Mindfulness versus escitalopram no tratamento da ansiedade

O ensaio clínico randomizado do Journal of American Medical Association demonstrou a não-inferioridade da MBSR em relação ao escitalopram.

Transtornos ansiosos são bastante prevalentes em todo mundo.1 Em estudos de base populacional, estima-se que uma em cada três pessoas apresentam sintomas ansiosos1 sendo o grupo de transtornos mentais mais comuns na população. No Brasil a prevalência de transtornos ansiosos é de 9,3%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).2 Além de mudanças na prevalência ao longo do ciclo da vida1, contextos específicos de vida podem modular a prevalência de sintomas – bem como sua intensidade – e de transtornos ansiosos.

Em uma amostra de estudantes de medicina brasileiros, entre os 365 participantes, 41% apresentou sintomas ansiosos.3 Entre médicos brasileiros, dos quase 4.500 profissionais avaliados em uma pesquisa do Research Center da Afya, oito em cada dez participantes apresentam ou já apresentaram sintomas ansiosos ao longo da vida. 

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O diagnóstico de transtornos ansiosos acontece unicamente com base nos achados clínicos coletados em uma entrevista com profissional treinado.7 Não há biomarcadores ou dados que venham de achados de exames complementares de imagem, por exemplo, para definirem esses diagnósticos.7 Numa tentativa de diminuição de possíveis vieses de subjetividade dos entrevistados, do entrevistado e da relação entre eles, instrumentos de coleta como o Inventário de Ansiedade de Beck (IAB) e entrevistas semiestruturadas, podem ser utilizados, com algumas evidências mostrando um aumento de acurácia em paralelo com um aumento da prevalência em estudos de base populacional.4,5 Contudo, essa medida contém suas limitações, como a superestimação de diagnósticos, menor aprofundamento na sintomatologia do paciente e um menor satisfação com a experiência clínica.6 

Atualmente, para o transtorno de ansiedade generalizada, a primeira linha de tratamento são os Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS)8,9 e intervenções de Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).10 Contudo, ambos apresentam barreiras de acesso que involvem desde aspectos econômicos, crenças negativas acerca de medicações, efeitos adversos, disponibilidade profissional, entre outros.8,9,10 

Sendo esse conjunto de transtornos altamente prevalentes e o acesso ao diagnóstico e ao tratamento nem sempre bem alcançado e distribuído, avaliar a possibilidade de outras modalidades de intervenção mais acessíveis é uma preocupação justa. Nessa direção, Hoge e colaboradores11 avaliaram a não inferioridade de uma Intervenção Baseada em Mindfulness para Redução do Estresse (método cuja sigla derivada do inglês é MBSR) em relação à farmacoterapia padrão ouro para a atenção primária à saúde, sendo o ISRS utilizado no estudo o escitalopram. 

Mindfulness costuma ser traduzido para a língua portuguesa como Atenção Plena (AP).12 A AP é um estado mental oposto à desatenção, em que o foco de atenção está intencionalmente regulado para os eventos e estímulos que estão ocorrendo no momento presente.12 Diversas intervenções baseadas em mindfulness já estão protocoladas e testadas com sua eficácia testada para redução de sintomas ansiosos consequentes do estresse e biomarcadores do estresse.13 

No caso específico da MBSR, a intervenção se baseia em um treinamento de 8 semanas com sessões semanais com duração de 2,5 horas e acrescidas de um retiro de silêncio.12 No Brasil, a demonstração da aplicabilidade desse protocolo já foi demonstrada por um grupo de pesquisa do interior de São Paulo. Os pesquisadores obtiveram resultados positivos relacionados à efetividade dessa intervenção para melhora do gerenciamento do estresse e melhoria da qualidade de vida de estudantes de enfermagem.14 

O ensaio clínico randomizado com cegamento único com desenho de não-inferioridade e margem de não-inferioridade pré-fixada conduzido por Hoge e sua equipe foi publicado neste ano na revista de psiquiatria do Journal of American Medical Association (JAMA psychiatry)11. A equipe demonstrou a não-inferioridade da MBSR em relação ao escitalopram com um follow-up de 24 semanas pós-intervenção. 

Mulher em meio a natureza em tratamento para distúrbios de ansiedade

Métodos

Nesse estudo conduzido entre junho de 2018 e janeiro de 2020, dos 276 adultos elegíveis para inclusão com diagnóstico de ansiedade, 208 completaram o ensaio. Os participantes foram randomizados 1:1 e comparados com 102 participantes com o protocolo de 8 semanas de MBSR e 106 participantes em um esquema flexível de tratamento com escitalopram variando entre 10 mg e 20 mg diários. 

O trabalho americano considerou para o diagnóstico dos transtornos ansiosos incluídos na amostra, como padrão ouro, uma entrevista clínica estruturada aplicada por entrevistador clinicamente experiente e com treinamento. Apenas participantes com primodiagnóstico atual e entre 18 e 75 anos foram incluídos. Todos os participantes diagnosticados foram orientados a responder a escala de avaliação de intensidade de sintomas Clinical Global Impression of Severity (CGI-S). Com base nos escores eles foram randomizados em clusters ajustados conforme a severidade dos sintomas, garantindo paridade.

Resultados 

A margem de não-inferioridade foi previamente fixada em −0.495, sendo justificada pelos autores como escolhida por ser a mesma utilizada em outros trials semelhantes anteriormente realizados e que utilizaram, também, essa mesma escala de avaliação de intensidade de sintomas. Durante o procedimentos do estudo, os pesquisadores tentaram estreitar ainda mais a margem de não-inferioridade em -0.33, o que geraria uma amostra de 380 indivíduos. No entanto, com o início da pandemia do SARS-CoV-2, devido aos protocolos de segurança, as coletas se encerraram com 276 participantes. 

Ao final do follow-up a diferença entre os grupos foi −0.07 (0.16; 95%IC, −0.38 a 0.23; P = 0.65), demonstrando a não-inferioridade do tratamento testado. Porém, esse estudo precisa ser compreendido no âmbito de suas limitações, apesar dos achados positivos.  

Conclusão 

Como esperado para um desenho de não-inferioridade, a delimitação da margem necessita de ser muito bem demonstrada, uma vez que é arbitrariamente definida e pode gerar vieses. Nesse estudo, embora ela tenha sido previamente definida – o que robustece os achados – fica um pouco nebulosamente justificada, atribuindo sua escolha a um paralelismo a outros trials.

De mesmo modo, a escolha do instrumento balizador é um tanto controversa, uma vez que na literatura outros instrumentos como o IAB são mais utilizados para avaliação de intensidade e controle de sintomas ansiosos e o grupo não justificou a escolha do método utilizado no estudo  Além disso, o fato de não ter havido um pareamento relativo à cronicidade dos sintomas e o volume de interação com o tratamento ser maior no MBSR podem ser fontes importantes de viés.

Mensagem prática 

Contudo, na prática cotidiana, embora esse estudo não ratifique o uso da MBSR como monoterapia padrão ouro para o controle de transtornos ansiosos, a percepção de estratégias de tratamento para além da farmacoterapia é um grande ganho para a melhora da qualidade de vida e segurança dos pacientes. Estudos de vida real futuros são necessários e podem incorporar braços paralelos que incluam essa intervenção, tornando ainda mais robustas suas evidências e ampliando seu uso cotidiano. 

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