Sepse: precisamos começar antibióticos em 1 hora?

A intervenção é benéfica de antibióticos antes de 1 hora é benéfica para os pacientes com sepse? Descubra no artigo.

No nosso dia a dia, algumas condutas são tidas como verdades tão absolutas, que não nos questionamos de onde elas vieram. Diante de um paciente com sepse, pensamos: “tenho uma hora para iniciar os antibióticos”, antes mesmo de pensar no foco infeccioso. Mas será que essa intervenção tão precoce é benéfica para os pacientes?

A antibioticoterapia sem dúvida é fundamental no paciente com sepse. No entanto, a imposição de uma janela de 1 hora para sua administração possui diversos pontos negativos. Frente a um paciente hipotenso, o médico da linha de frente pode assumir que a causa do quadro é infecciosa, sem cogitar diagnósticos diferenciais. Com isso, ele realiza o diagnóstico errado, instituindo rapidamente um tratamento absolutamente incorreto. Dessa forma, muitos pacientes recebem antibióticos de forma desnecessária, ou com espectro amplo demais. Isso implica diretamente no aumento da multirresistência microbiana, além de aumento nos custos para o sistema de saúde. 

A intervenção é benéfica de antibióticos antes de 1 hora é benéfica para os pacientes com sepse?

De onde veio essa recomendação de antibióticos em 1 hora?

A iniciativa Surviving Sepsis Campaign (SSC) lançou seu primeiro guideline em 20041 , desde o começo advogando pelo início de antibióticos em até 1 hora, após a chegada do paciente com sepse no pronto socorro. No entanto, na época, não havia nenhum estudo que avaliasse a associação entre atraso no início de antibioticoterapia e aumento na mortalidade. Essa recomendação não possuía qualquer referência que a apoiasse, recebendo no próprio guideline grau E (“nonrandomized, historical controls and expert opinion”).

Na guideline de 20081, a recomendação foi promovida a grau D (“case series or expert opinion”), para pacientes com sepse, e grau B (” downgraded RCT or upgraded observational studies”), para pacientes com choque séptico. A evidência de aumento de mortalidade com atraso no início de antibioticoterapia nos pacientes com choque séptico veio de um estudo realizado por Kumar2 em 2004.

Esse trabalho analisou, de forma retrospectiva, pacientes com choque séptico, avaliando se haveria associação entre atraso na instituição de antibióticos e mortalidade. Nas primeiras 6 horas após instalação de hipotensão, cada hora de atraso para início de antibioticoterapia adequada foi associada a um aumento de 7.6% na mortalidade. Quando avaliada como uma variável contínua , o “odds ratio para morte”, foi de 1.119, para cada hora de atraso (IC 95%;  1.103 – 1.136;  p<0.001). Isso significa dizer que, cada hora de atraso reduz em 12% a chance de sobrevivência. No entanto, o tempo médio até a administração do antibiótico foi de 13,5 horas.

Desde o estudo, essa meta se tornou uma “verdade absoluta”, inclusive extrapolada para pacientes com sepse, ainda que sem choque séptico instalado. 

Figura 1: (retirada do artigo original de Kumar2): Odds ratio (OR) para morte hospitalar se iniciado antibioticoterapia com tempos de atraso maiores, em comparação com a introdução em até 1 hora.

Os guidelines do SSC de 2012 e 2016 mantiveram essa recomendação, baseados no estudo de Kumar e outros 4 estudos. Um deles foi observacional3, encontrando benefício na administração de antibióticos em menos de 1 hora, quando comparado a sua administração após 6 horas. Outro trabalho4 foi realizado em pacientes em pós operatório. O terceiro trabalho5 comparou a mortalidade dos pacientes antes, e após 3 anos, de um programa de educação continuada sobre o tratamento da sepse. O próprio trabalho não observou relação entre o início precoce de antibióticos e a redução encontrada na mortalidade. Por fim, o último artigo6 utiliza “data dredging”, com realização de diversas análises estatísticas, sem correção para multiplicidade. Assim, nenhum destes trabalhos é adequado para embasar a recomendação da meta de até 1 hora para início de antibioticoterapia. 

Afinal, quanto tempo temos para iniciar a antibioticoterapia?

Uma metanálise7 publicada em 2015, incluiu 16.000 pacientes, provenientes de 11 estudos. Ela não encontrou diferenças na mortalidade se os antibióticos eram iniciados com menos de 3h, ou mais de 3h, a partir do momento de triagem no pronto socorro (p=0.21). Mesmo com atrasos acima de 5h, não houve diferença na mortalidade, em relação aos pacientes com início da terapia de uso de antibióticos em menos de 1 hora.

Uma análise  post hoc8 do estudo ARISE foi publicada em 2020, com o objetivo de estudar essa mesma questão. O ARISE incluiu 51 centros, de 5 países diferentes, com 1587 pacientes. Neste estudo, a mediana de tempo para início de antibióticos foi de 69 minutos. Foram comparados pacientes com início da medicação em < 1 hora versus > 1 hora, após sua chegada no pronto socorro. Como esperado, pacientes mais graves tiveram uma tendência a receber terapia mais precocemente, de forma que a análise do desfecho primário (mortalidade em 90 dias), precisou ser ajustada pela gravidade do quadro. Não foi encontrada diferença na mortalidade entre pacientes com início de antibiótico em menos de 1 hora, e aqueles com início entre 1-6 horas (HR 1.21; IC 95% 0.90 – 1.63; log-rank p=0.21)

Conclusão

É inquestionável a importância do início rápido de antibióticos nos pacientes sépticos.  No entanto, não há embasamento sólido para o início de antibióticos em menos de 1 hora, ainda que isso seja recomendado em guidelines. Frente às evidências atuais, precisamos racionalizar que talvez exista uma janela de tempo ideal, que não é necessariamente de apenas 1 hora, para iniciar essa terapia. Especialmente nos pacientes com sepse, mas sem choque séptico, podemos estender esse período. 

A ampliação desse intervalo nos permite tempo hábil para priorizar a ressuscitação inicial do paciente, refinar a investigação de diagnósticos diferenciais, coletar culturas de sítios apropriados, e escolher o antibiótico com espectro mais seletivo possível para o sítio suspeito/confirmado.

Referências bibliográficas:

    1.  Links para os guidelines da Surviving Sepsis Campaign:
      • 2004: Surviving Sepsis Campaign guidelines for management of severe sepsis and septic shock. Crit Care Med. 2004 Mar;32(3):858-73. doi: 10.1097/01.ccm.0000117317.18092.e4.
      • 2008: Surviving Sepsis Campaign: international guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2008. Crit Care Med. 2008 Jan;36(1):296-327. doi: 10.1097/01.CCM.0000298158.12101.41.
      • 2012: Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2012. Crit Care Med. 2013 Feb;41(2):580-637. doi: 10.1097/CCM.0b013e31827e83af. 
      • 2016: Surviving Sepsis Campaign: International Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Intensive Care Med. 2017 Mar;43(3):304-377. doi: 10.1007/s00134-017-4683-6.
    1. Kumar A, Roberts D, Wood KE, Light B, Parrillo JE, Sharma S, Suppes R, Feinstein D, Zanotti S, Taiberg L, Gurka D, Kumar A, Cheang M. Duration of hypotension before initiation of effective antimicrobial therapy is the critical determinant of survival in human septic shock. Crit Care Med. 2006 Jun;34(6):1589-96. doi: 10.1097/01.CCM.0000217961.75225.E9
    2. Ferrer R, Artigas A, Suarez D, Palencia E, Levy MM, Arenzana A, Pérez XL, Sirvent JM; Edusepsis Study Group. Effectiveness of treatments for severe sepsis: a prospective, multicenter, observational study. Am J Respir Crit Care Med. 2009 Nov 1;180(9):861-6. doi: 10.1164/rccm.200812-1912OC
    3. Barie PS, Hydo LJ, Shou J, Larone DH, Eachempati SR. Influence of antibiotic therapy on mortality of critical surgical illness caused or complicated by infection. Surg Infect (Larchmt). 2005 Spring;6(1):41-54. doi: 10.1089/sur.2005.6.41.
    4. Castellanos-Ortega A, Suberviola B, García-Astudillo LA, Holanda MS, Ortiz F, Llorca J, Delgado-Rodríguez M. Impact of the Surviving Sepsis Campaign protocols on hospital length of stay and mortality in septic shock patients: results of a three-year follow-up quasi-experimental study. Crit Care Med. 2010 Apr;38(4):1036-43. doi: 10.1097/CCM.0b013e3181d455b6
    5. Gaieski DF, Mikkelsen ME, Band RA, Pines JM, Massone R, Furia FF, Shofer FS, Goyal M. Impact of time to antibiotics on survival in patients with severe sepsis or septic shock in whom early goal-directed therapy was initiated in the emergency department. Crit Care Med. 2010 Apr;38(4):1045-53. doi: 10.1097/CCM.0b013e3181cc4824
    6. Sterling SA, Miller WR, Pryor J, Puskarich MA, Jones AE. The Impact of Timing of Antibiotics on Outcomes in Severe Sepsis and Septic Shock: A Systematic Review and Meta-Analysis. Crit Care Med. 2015 Sep;43(9):1907-15. doi: 10.1097/CCM.0000000000001142
    7. Esther B Bulle, Sandra L Peake, Mark Finnis, Rinaldo Bellomo, Anthony Delaney, on behalf of the ARISE Investigators, ARISE Investigators. Time to antimicrobial therapy in septic shock patients treated with an early goal-directed resuscitation protocol: A post-hoc analysis of the ARISE trial. Emergency Medicine Australasia 2020. doi: 10.1111/1742-6723.13634

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