Suporte ventilatório não invasivo reduz a chance de intubação em pacientes com covid-19?

Estudo verificou que o uso do suporte ventilatório não invasivo esteve associado de forma independente a maior sobrevida.

A insuficiência respiratória aguda hipoxêmica constitui um dos aspectos da covid-19 grave. Logo no início da pandemia, ficou evidente uma sobrecarga em vários sistemas de UTIs, com mortalidade elevada observada em pacientes com necessidade de ventilação mecânica invasiva. Estratégias que visassem reduzir a necessidade de VM invasiva passaram a ser ativamente buscadas. Nesse contexto um estudo brasileiro englobou coorte de 13.301 pacientes com covid-19 grave admitidos em UTIs brasileiras, no período dos 8 primeiros meses da pandemia no país. Ao longo do período analisado, evidenciou-se uma menor taxa de mortalidade em alguns centros e um maior uso do suporte não invasivo. Além disso, o uso do suporte ventilatório não invasivo esteve associado de forma independente a maior sobrevida. Por sua vez, o uso de ventilação mecânica invasiva, presença de disfunção de múltiplos órgãos, idade (> 60 anos) e fragilidade estiveram associados a maior mortalidade. Estes dois últimos associados de forma independente a maior mortalidade.

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Suporte ventilatório não invasivo reduz a chance de intubação em pacientes com covid-19?

RECOVERY-RS: estudo randomizado sobre estratégias ventilatórias não invasivas

O estudo, Effect of Noninvasive Respiratory Strategies on Intubation or Mortality Among Patients With Acute Hypoxemic Respiratory Failure and COVID-19, publicado no JAMA em janeiro de 2022, envolveu 48 hospitais no Reino Unido e Jersey. Trata-se de ensaio clínico randomizado, composto por três grupos, desenhado para comparar a efetividade do uso do CPAP (pressão positiva contínua nas vias aéreas) ou CNAF (Cânula Nasal de Alto Fluxo), comparada com a oxigenioterapia convencional (O2 convencional).

Foram incluídos pacientes adultos com suspeita de covid-19 ou confirmação com insuficiência respiratória aguda (SpO2 ≤ 94% com FiO2 ≥ 40%) e sem contraindicações para intubação (caso necessário). Foram excluídos pacientes com necessidade imediata (< 1 hora) de VM invasiva ou gestação. A randomização ocorreu para um dos três grupos: CPAP, CNAF ou Oxigênio Convencional.

O grupo oxigênio convencional recebeu oxigênio via cateter nasal ou máscara concentradora (com reservatório), o grupo CPAP recebeu a intervenção através de aparelho de CPAP que não permitia a incorporação de nenhum tipo de pressão inspiratória positiva de vias aéreas e, por sua vez, o grupo CNAF utilizou sistema específico de Cânula Nasal de Alto Fluxo. Importante frisar que a indicação de intubação endotraqueal foi realizada conforme julgamento clínico pelo médico assistente, sem critérios pré-estabelecidos pelo protocolo do estudo para tal indicação.

O desfecho primário pesquisado foi composto por intubação traqueal ou mortalidade dentro de 30 dias pós-randomização. Desfechos secundários como incidência individual de mortalidade e intubação em 30 dias, tempo para intubação, duração da VM invasiva, mortalidade geral, tempo de internação também foram pesquisados, entre outros.

Resultados

Com a redução do número de casos de covid-19, o trial interrompeu o recrutamento de forma precoce em 03 de maio de 2021. Conforme cálculo prévio, o tamanho amostral desejado era de 4.002 participantes.

Foram incluídos então, entre Abril 2020 e Maio 2021, 1.273 pacientes para análise, com follow-up final em junho de 2021, com a perda de apenas 13 pacientes. Um total de 733 pacientes foram alocados na comparação CPAP (377 pacientes) vs. oxigênio convencional (356 pacientes). E 783 pacientes foram alocados na comparação CNAF (415 pacientes) vs. oxigênio convencional (368 pacientes). A mediana do tempo do início da doença até a randomização foi de 9 dias de sintomas, reforçando a característica aguda da fase inicial da doença.

Todos os grupos receberam o tratamento proposto em mais de 90% dos pacientes. No grupo CPAP, a pressão positiva inicial teve média de 8,3 cmH2O. No grupo CNAF, o fluxo inicial médio foi de 52,4 litros por minuto. Quanto ao crossover, o estudo apresentou taxa total de 17.1%, sendo 15,3% no grupo CPAP, 11,5% no grupo CNAF e 23,6% no grupo Oxigênio Convencional.

Em relação aos desfechos, vamos aos principais: 

  • Na comparação CPAP vs. Oxigênio Convencional, o desfecho primário composto (mortalidade 30 dias e intubação traqueal) ocorreu em 36,4% do grupo CPAP vs. 44,4% do grupo oxigênio convencional, com diferença estatisticamente significativa (p=0,03);
  • Na comparação CNAF vs. Oxigênio Convencional, a diferença quanto ao desfecho primário não obteve diferença estatisticamente significativa (p=0,83), sendo 44,3% no grupo CNAF vs. 45,1% no grupo oxigênio;
  • A incidência individual de intubação traqueal em 30 dias foi menor no grupo CPAP em relação ao grupo O2 convencional, com diferença significativa (diferença absoluta, 8% com IC 95%, -15% a -1%);
  • Nem o uso do CPAP nem mesmo de CNAF reduziu de forma significativa a mortalidade na UTI ou no hospital;
  • Nos pacientes que necessitaram de intubação, o tempo para intubação no grupo CPAP foi significativamente maior quando comparado ao grupo O2 convencional.

OBS: Oito participantes apresentaram eventos adversos sérios (7 no grupo CPAP e 1 no grupo O2 convencional). Apenas 4 desses eventos foram ligados à intervenção específica do trial (um paciente com enfisema e pneumomediastino cirúrgico, dois pacientes com pneumotórax e pneumomediastino, e um pacientes com vômitos demandando intubação endotraqueal de emergência). 

Saiba mais: Ventilação mecânica em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo

Interpretando os achados 

É possível que o trial não tenha tido poder suficiente para evidenciar diferença estatística no grupo CNAF, uma vez que foi interrompido precocemente, além da taxa de 17% de crossover. O desfecho primário composto encontrado teve maior impacto pela redução do percentual de intubação como principal fator, não a mortalidade. Inclusive, quanto à mortalidade, nem CPAP nem CNAF tiveram impacto na mesma de forma específica.

Como não houve padronização dos critérios de intubação, é possível estimar que a menor taxa de intubação no grupo CPAP tenha sido atribuída a algum grau de viés de atraso na intubação pelos clínicos, dada a natureza não cega da intervenção. A ausência de padronização dos critérios de intubação, deixando a critério do clínico, permite maior generalização dos resultados pois reflete a prática habitual.

Além disso, foi evidenciado um maior tempo para intubação no grupo CPAP quando comparado ao O2 convencional. No entanto, níveis fisiológicos no momento da intubação foram similares em todos os grupos, evidenciando algum grau de semelhança nos critérios para intubação.

Mensagens Práticas 

  • Vimos na prática a alta mortalidade dos pacientes que foram intubados. Aumenta o risco de infecção nosocomial, demanda por terapias avançadas, além de impor maior risco relacionado à assistência. O maior número de pacientes intubados também contribui com a sobrecarga do sistema.
  • Outra constatação de beira de leito que coincide com a evidência acima foram os melhores resultados em várias UTIs de pacientes que foram submetidos à estratégia não invasiva. Observamos menor tempo de internação e menor índice de complicações nosocomiais. Uma impressão pessoal compartilhada com outros intensivistas.
  • O estudo traz evidência importante no manejo da insuficiência respiratória aguda hipoxêmica por covid-19.
  • O uso do suporte ventilatório não invasivo (CPAP) como estratégia inicial reduziu o risco significativo do desfecho primário composto por intubação traqueal e mortalidade, quando comparado ao uso de O2 convencional;
  • Sendo assim, devemos considerar para pacientes com covid-19 grave e insuficiência respiratória aguda hipoxêmica (SpO2 ≤ 94% com FiO2 ≥ 40%), uma estratégia inicial com CPAP (pressão positiva contínua de vias aéreas).

Referências bibliográficas:

  • Kurtz P, Bastos LSL, Dantas LF, et al. Evolving changes in mortality of 13,301 critically ill adult patients with COVID-19 over 8 months. Intensive Care Med. 2021;47(5):538-548. doi:10.1007/s00134-021-06388-0.
  • Perkins GD, Ji C, Connolly BA, et al. Effect of Noninvasive Respiratory Strategies on Intubation or Mortality Among Patients With Acute Hypoxemic Respiratory Failure and COVID-19: The RECOVERY-RS Randomized Clinical Trial. JAMA. 2022;327(6):546–558. doi:10.1001/jama.2022.0028.

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