O eixo intestino-coração e as doenças cardiovasculares

Estratégias capazes de modular a microbiota intestinal, como probióticos e prebióticos, podem auxiliar na diminuição do risco das doenças cardiovasculares. 

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As doenças cardiovasculares (DCVs) e metabólicas são as principais causas de morbimortalidade em todo o mundo, afetando cerca de um terço da população.1 O microbioma intestinal apresenta um papel importante no controle do metabolismo e da homeostase do organismo humano. Na última década, diversos estudos demonstraram que o microbioma intestinal pode influenciar a patogênese da aterosclerose e insuficiência cardíaca, através da modulação do denominado eixo intestino-coração.2 Diversos metabólitos produzidos pela flora intestinal, como N-óxido de trimetilamina, ácidos graxos de cadeia curta, ácidos biliares primários e secundários, derivados de triptofano e indol, fenilacetilglutamina e aminoácidos de cadeia ramificada, participam da ocorrência e desenvolvimento de doenças cardiovasculares por meio da ativação anormal de vias de sinalização inflamatórias e metabólicas, especialmente quando a integridade da barreira intestinal é quebrada.3

A dieta ocidental, rica em carne vermelha, estimula a produção bacteriana de trimetilamina, a qual é oxidada no fígado para o metabólito pró-aterogênico N-óxido de trimetilamina. O N-óxido de trimetilamina pode contribuir para a aterosclerose por interferência no transporte de colesterol, formação de células espumosas e agregação plaquetária, desempenhando um papel potencial em síndromes coronarianas agudas. A redução da fibra alimentar, por sua vez, está associada à produção bacteriana reduzida do ácido graxo de cadeia curta butirato, o qual apresenta efeitos imunomoduladores na mucosa intestinal e também serve como principal substrato energético para os colonócitos. A redução dos níveis de butirato no intestino pode promover inflamação local, agravar a disbiose e contribuir para o comprometimento da barreira intestinal, o que leva a translocação de endotoxinas bacterianas, como lipopolissacarídeos e, consequentemente, a mais a inflamação local e sistêmica.4

As bactérias produtoras de butirato desempenham um papel fundamental na saúde humana. Diversas dessas bactérias, incluindo Roseburia intestinalis, Butyrivibrio crossotus e Faecalibacterium prausnitzii, são relativamente depletadas na doença cardiovascular aterosclerótica e diabetes tipo 2.1 Estudos demonstram que a bactéria Roseburia intestinalis está inversamente correlacionada com desenvolvimento de lesão aterosclerótica em camundongos, sendo que sua suplementação, em combinação com uma dieta rica em fibras, é capaz de reduzir o tamanho das placas de aterosclerose na aorta.5 Achados similares também foram demonstrados para bactéria Akkermansia muciniphila e até mesmo para administração exógena de butirato. Além disso, camundongos ApoE −/− germe-free, expostos a uma dieta pobre em colesterol, apresentaram maior desenvolvimento de placas ateroscleróticas do que os controles, reforçando o papel da microbiota na gênese da aterosclerose.6

Outros metabólitos microbianos também se associam a maior risco de doença aterosclerótica. O sulfato de indoxil, produzido no fígado após a degradação do triptofano pela triptofanase bacteriana, correlacionou-se à maior rigidez arterial e doença vascular periférica, enquanto o P-cresol, produto da fermentação bacteriana colônica da fenilalanina e tirosina, com o aumento de eventos cardiovasculares.7,8 Nesse contexto, pode-se inferir que muitos outros fatores ainda desconhecidos contribuem para o mecanismo da doença arterial coronariana e devem ser identificados no futuro. Recentemente, um importante estudo que avaliou pacientes com síndrome coronariana aguda demonstrou, através da análise concomitante do metaboloma e microbioma, um perfil de metabólitos e assinatura microbiana peculiar nesse subgrupo de indivíduos, com redução de espécies bacterianas da família Clostridiaceae, destacando o papel do intestino na doença coronariana.9

Em pacientes com insuficiência cardíaca também se descreve alterações importantes na composição e diversidade do microbioma intestinal, as quais são virtualmente implicadas em um estado inflamatório crônico deletério ao coração. Observa-se um supercrescimento de bactérias patogênicas, como Escherichia, Shigella, Klebsiella, Haemophilus e Ruminococcus gnavus, enquanto Eubacterium, Blautia, Collinsella e Prevotella, com potencial anti-inflamatório, estão reduzidas.10 A função cardíaca prejudicada afeta a microcirculação intestinal, o que por sua vez altera a permeabilidade da barreira intestinal e aumenta a translocação bacteriana. Pacientes descompensados, apresentam níveis sanguíneos mais elevados de lipopolissacarídeos e citocinas pró-inflamatórias. Além disso, a redução de bactérias produtoras de butirato prejudica a disponibilidade de ácidos graxos de cadeia curta, os quais constituem importante fonte de energia alternativa ao coração em falência.1

Entre os probióticos intestinais, várias cepas de Lactobacillus foram amplamente estudadas dado seu potencial terapêutico em doenças cardiovasculares por meio da modulação do metabolismo do colesterol, resposta imune, resposta ao estresse oxidativo e de metabólitos derivados da microbiota intestinal.12 Lactobacillus foram associados a redução de N-óxido de trimetilamina e lipopolissacarídeos circulantes, sabidamente associados a aterogênese, além de melhorarem a barreira intestinal.12 Alguns estudos destacaram o potencial de L. rhamnosus para redução do colesterol e melhora do perfil glicêmico.13,14 A suplementação de L. rhamnosus em pacientes com doença arterial coronariana teve efeitos benéficos na depressão, ansiedade e biomarcadores inflamatórios.15 Além da própria bactéria, a proteína p75 isolada de L. rhamnosus GG reduziu consideravelmente infartos em tecidos cardíacos de ratos de forma dose-dependente.12,16

No cenário atual, pode-se inferir que estratégias capazes de modular a microbiota intestinal ou suas atividades metabólicas, como probióticos e prebióticos, podem auxiliar na diminuição do risco das doenças cardiovasculares. Dietas ricas em vegetais, polifenóis e fibras fermentáveis devem ser estimuladas e são capazes de influenciar positivamente o microbioma intestinal nesse contexto (tabela 1). Novos estudos são cruciais para o melhor entendimento do recém-descrito eixo intestino-coração, assim como para a potencial utilização de probióticos na prevenção e tratamento dessas doenças.

O eixo intestino-coração e as doenças cardiovasculares

Tabela 1 – Tipos de dieta e efeitos na saúde cardiovascular11

Tipo de dieta Efeito na microbiota Efeito na saúde cardiovascular
Rica em fibras Eubiose Benéfico
Rica em gorduras Disbiose Maléfico
Dieta DASH Eubiose Benéfico
Rica em carne vermelha Disbiose Maléfico
Rica em vegetais Eubiose Benéfico
Rica em carnitina Disbiose Maléfico
Pobre em colina Eubiose Benéfico
Rica em trimetil lisina Disbiose Maléfico
Dieta mediterrânea Eubiose Benéfico

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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