Abordagem da ACLF: a faceta crítica da doença hepática crônica

A ACLF exige uma abordagem sistematizada, com alvo na identificação e tratamento precoce dos fatores precipitantes.

O termo ACLF, cunhado em 2013 no estudo CANONIC, é um acrônimo da língua inglesa derivado da expressão acute-on-chronic liver failure, que objetiva delinear um subgrupo de cirróticos descompensados com mortalidade destacadamente elevada, superando 20% em 28 dias, muito além da média de mortalidade de 5% inerente às descompensações agudas corriqueiras das hepatopatias crônicas. 

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Abordagem da ACLF: a faceta crítica da doença hepática crônica

Abordagem da ACLF: a faceta crítica da doença hepática crônica

Fisiopatologia 

A fisiopatologia da ACLF se baseia na resposta inflamatória exacerbada a estímulos endógenos e exógenos, conhecidos como DAMPs (padrões moleculares associados a dano) e PAMPs (padrões moleculares associados a patógenos), culminando com disfunções orgânicas ameaçadoras à vida.   

Diagnóstico e avaliação prognóstica 

O diagnóstico da ACLF é estabelecido pela análise de 6 sistemas orgânicos principais, compilados por meio do escore CLIF-C OF, que guarda muitas semelhanças com o famoso escore SOFA (Sequential Organ Failure Assessment), aplicado aos pacientes sépticos.   

CLIF-C OF 
Órgãos e sistemas  Disfunção  Falência 
Rins  Cr: 1,5 a 1,9 mg/dL  Cr ≥ 2,0 mg/dL ou TRS 
Cérebro  EH: grau I ou II  EH: grau III ou IV 
Pulmões  ——————————-  PaO2/FiO2 ≤ 200 

SpO2/FiO2 ≤ 214 

Circulação  ——————————-  Terapia vasopressora 
Fígado  ——————————-  BT ≥ 12 mg/dL 
Coagulação  ——————————-  RNI ≥ 2,5 

CLIF-C OF: Consórcio da EASL para a definição e gradação da ACLF; Cr: Creatinina sérica; TRS: Terapia renal substitutiva; EH: Encefalopatia hepática (critério de Wast-Haven); PaO2: Pressão parcial de oxigênio arterial; SpO2: Saturação arterial de oxigênio; BT: Bilirrubinas totais; RNI: Relação normatizada internacional.  

A partir dos dados obtidos pelo escore CLIF-C OF, a ACLF pode ser categorizada em cinco subtipos, com mortalidade incremental:  

  • 1a: falência renal exclusiva;  
  • 1b: disfunção renal e/ou cerebral, somada a uma falência orgânica isolada, por exceção da renal;  
  • 2: duas falências orgânicas;  
  • 3a: 3 falências orgânicas; 
  • 3b: 4 ou mais falências orgânicas. 

Uma vez diagnosticada a ACLF, deve-se avaliar o prognóstico por meio do Escore CLIF-ACLF, que engloba, além dos elementos do próprio escore CLIF-C OF, a idade e contagem de leucócitos globais. O escore CLIF-ACLF varia entre 0 e 100 pontos (gravidade crescente com a progressão da numeração), é validado externamente e supera a capacidade preditiva de escores tradicionais, como o MELD, MELD-Na e Child-Pugh. O prognóstico deve ser reavaliado em 3 a 7 dias, com aplicações seriadas do escore CLIF-ACLF, como averiguação da resposta às medidas instituídas. 

A presença de 4 ou mais falências orgânicas ou Escore CLIF-C ACLF > 70 pontos, na ausência de acesso rápido ao transplante hepático, devem levar ao questionamento quanto à manutenção das medidas suportivas e a pertinência de instituição de cuidados paliativos. Cabe ressaltar que a instalação de ACLF em pacientes inelegíveis para o transplante hepático é preâmbulo da terminalidade. Dessa forma, o tratamento da ACLF deve ser pautado sob a óptica da proporcionalidade terapêutica, evitando-se a obstinação em medidas fúteis e potencialmente promotoras de distanásia.  

Abordagem da ACLF 

A ACLF exige uma abordagem sistematizada, com alvo na identificação e tratamento precoce dos fatores precipitantes, presentes em até dois terços dos casos. O estudo PREDICT-2020 elencou os principais gatilhos da ACLF, entre os quais destacamos as infecções bacterianas, hepatite alcoólica, hemorragia gastrointestinal, lesões hepáticas induzidas por drogas (DILI) e encefalopatia medicamentosa por opioides, benzodiazepínicos, terapia de supressão ácida e antimicrobianos.   

As medidas de suporte às disfunções orgânicas, como o emprego de drogas vasoativas, ventilação mecânica e terapia renal substitutiva na terapia intensiva, são igualmente importantes. Entretanto, apesar da instituição de tratamento adequado, a ACLF tem um prognóstico reservado,  especialmente nos graus 2 e 3, motivo pelo qual se deve objetivar a listagem prioritária em fila de transplante hepático.  

Os usuários de beta-bloqueadores que desenvolvem ACLF tendem a apresentar quadros de menor gravidade, com atenuação da mortalidade em 28 dias e aumento da sobrevida livre de transplante. Entretanto, na fase de recuperação da ACLF, o uso dos beta-bloqueadores deve ser parcimonioso, evitando-se diante de síndrome hepatorrenal ou hipotensão arterial (pressão arterial sistólica < 90 mmHg ou pressão arterial média < 65 mmHg). Em pacientes com ascite, dada a proeminente disfunção circulatória do cirrótico, doses mais baixas de beta-bloqueador são preconizadas.  

Tratamento de gatilhos específicos 

reativação do vírus B é uma causa incomum de ACLF em nosso meio. Todavia, deve-se manter uma alta suspeição clínica, pois o emprego precoce e preemptivo de análogos nucleotídeos com alta barreira genética, como o tenofovir e entecavir, traz benefícios consistentes na sobrevida (57% Vs 15% em 3 meses, em comparação ao placebo), especialmente diante de queda pronunciada e precoce da carga viral (2 log em 2 semanas).  

A corticoterapia na exacerbação de hepatite autoimune (HAI) complicada em ACLF deve ser individualizada, evitando-se na vigência de infecção descontrolada. Lembramos que, na ausência de diagnóstico prévio, recomenda-se a biópsia hepática, preferencialmente pela via transjugular, dada ao risco aumentado de sangramento em razão da coagulopatia. Apenas um terço desses pacientes é elegível para a corticoterapia, grupo que se beneficia com incremento da sobrevida em 90 dias (75% Vs 48%, P < 0,0001). As principais contraindicações à corticoterapia incluem sepse ativa, peritonite bacteriana espontânea (PBE) e sangramento ativo. A estagnação ou piora da hiperbilirrubinemia ou do MELD-Na em 7 dias é indicativa de possível futilidade, devendo-se considerar a suspensão da corticoterapia e o transplante hepático precoce.  

Na hepatite aguda alcoólica complicada em ACLF grau 3 não se recomenda a corticoterapia, bem como em pacientes com ACLF grau 1 ou 2 com infecção bacteriana descontrolada. A gravidade da ACLF se associa ao incremento do risco de infecções e à redução progressiva da resposta à corticoterapia: 76,6% na ausência de ACLF, para 8,3% na ACLF grau 3. 

A falha terapêutica clínica-endoscópica na hemorragia digestiva alta varicosa ocorre em até 20% dos pacientes, sendo o risco dobrado na vigência de ACLF. Nesse cenário, advoga-se o uso preemptivo de TIPS nas primeiras 72h para pacientes com Child-Pugh entre B7 e C14 ou como medida de resgate na recorrência de sangramento, com impacto expressivo na mortalidade, reduzida em até 75%. A encefalopatia hepática não deve ser considerada uma contraindicação absoluta ao TIPS, pois o procedimento pode representar a única ponte viável para o transplante hepático.  

Manejo das infecções 

Na suspeita de infecção grave, expressa por meio de ACLF ou choque séptico, a antibioticoterapia empírica, precoce e de amplo espectro deve ser instituída, direcionada por dados epidemiológicos. A taxa global de infecções por organismos resistentes a múltiplas drogas em hepatopatas tem se aproximado de 34%, implicando em incremento de mortalidade diante de inadequação da cobertura.  

Os principais fatores de risco para a resistência antimicrobiana incluem a exposição prévia a antibióticos, MELD elevado e procedimentos diagnósticos e terapêuticos recentes. Todavia, deve-se equilibrar a necessidade de um espectro amplo da cobertura empírica com o exercício de pressão seletiva para o desenvolvimento de resistência antimicrobiana. Logo, transcorridas 24 a 72 horas da introdução de antibioticoterapia, deve-se almejar o descalonamento, preferencialmente com base em testes microbiológicos rápidos (MALDI-TOF MS e PCR multiplex) e dados sobre a colonização por organismos multirresistentes.  

Entre as infecções mais prevalentes no contexto da ACLF estão a PBE, definida à paracentese propedêutica por contagem de neutrófilos ≥ 250/mm³; e as pneumonias bacterianas. Outros sítios de infecção frequentes incluem o trato urinário, pele e partes moles.  

As infecções fúngicas invasivas ocorrem em até 5% dos pacientes com cirrose descompensada, com mortalidade em 28 dias de até 60%. O destaque é para a candidíase invasiva e candidemia, com frequência de aproximadamente 80%, seguida por aspergilose invasiva, respondendo por 15% das micoses sistêmicas na ACLF. Os fatores de risco incluem a imunodeficiência associada à cirrose, exposição à antibioticoterapia de amplo espectro, colonização multifocal por fungos, presença de cateteres vasculares, nutrição parenteral total, diabetes mellitus, permanência prolongada em CTI, terapia renal substitutiva e hepatite aguda alcoólica grave tratada com corticoesteroides. A terapia empírica consiste prioritariamente nas equinocandinas, com suspensão na ausência de comprovação da infecção fúngica e após 2 resultados negativos de 1,3-beta-D-glucana.  

Medidas suportivas especiais 

O suporte hepático bioartificial e plasmaférese, no momento, devem ser restritos aos ensaios clínicos. A diálise com albumina (MARS) parece melhorar a gravidade da encefalopatia hepática, mas não há evidências de impacto da sobrevida. A plasmaferese total tem demonstrado benefício na ACLF, incluindo aumento da sobrevida em três meses, bem como melhora da coagulopatia, hiperbilirrubinemia e hiperamonemia. 

O emprego do fator de crescimento de colônias de granulócitos (G-CSF), como o filgrastim, não é recomendado rotineiramente nos pacientes com ACLF. O racional para a sua utilização se baseia na função imunomoduladora de células tronco derivadas da medula óssea, que poderiam auxiliar na regeneração de lesões hepáticas. Ensaios randomizados orientais demonstraram a redução de complicações e melhora da sobrevida. Na Europa, entretanto, o estudo GRAFT-2021 foi interrompido precocemente por não demonstrar benefício na taxa livre de transplante, além de amplificar os eventos adversos. 

Avaliação nutricional 

A triagem para fragilidade, desnutrição e sarcopenia deve ser universal para os pacientes em ACLF. A ferramenta mais recomendada é o Royal Free Hospital Nutrition Prioritizing Tool (RFH-NPT). A avaliação da sarcopenia pode ser inferida a partir da massa muscular do psoas na topografia da terceira vértebra lombar em TC ou RM.  

A cirrose é uma condição catabólica, com necessidade de adequado aporte energético, com alvo de ingestão calórica de 30-35 kcal/kg/dia e proteica de 1,2-1,5 g/kg/dia. A via oral é a preferencial, seguida pela via enteral, reservando-se a nutrição parenteral como o último reduto diante de contraindicação às outras vias.  

O estado de catabolismo e a propensão à hipoglicemia pela escassa reserva hepática de glicogênio trazem a necessidade de aporte endovenoso de glicose diante da previsão de jejum por períodos superiores a 12 horas a uma taxa de infusão da 2-3 g/kg/dia.  

A vigilância para síndrome de realimentação deve ser estreita, com monitorização e tratamento ativo da hipofosfatemia, hipocalemia e hipomagnesemia, bem como suplementação de tiamina para a profilaxia de encefalopatia de Wernicke.  

Transplante hepático 

O transplante hepático deve ser considerado para todos os pacientes elegíveis com ACLF grau 2 ou 3, em decorrência do benefício robusto em sobrevida (95% Vs 23% em 28 dias; 90,5% Vs 12,5% em 90 dias). Entretanto, trata-se de uma indicação de transplante mais onerosa, com elevada mortalidade em fila de espera e altas taxas de complicações peroperatórias.  

Nesse cenário, tem-se destinado esforços para a priorização da ACLF nas listagens baseadas no MELD-Na, objetivando atender o princípio de equidade. Dada a grande mortalidade em lista de espera, o afrouxamento de critérios de órgãos doadores deve ser encorajado, para a inclusão de fígados marginais provenientes de pacientes mais idosos, com esteatose ou hipernatremia, por exemplo.  

Por fim, é importante refletir que nem todo paciente com ACLF é elegível para o transplante hepático. Deve-se esmerar pela busca de critérios indicativos de futilidade, selecionando um subgrupo de pacientes com alta morbimortalidade peroperatória. Alguns marcadores reconhecidos de mau prognóstico incluem: fragilidade grave, sangramento gastrointestinal ativo, sepse controlada a menos de 24 horas, infecções por bactérias multirresistentes, instabilidade hemodinâmica com necessidade de noradrenalina > 50 mcg/min, hiperlactatemia > 9 mmol/L, insuficiência respiratória com relação PaO2/FIO2 < 150 mmHg e trombose de veia porta. A literatura ainda não é homogênea na definição dos critérios de futilidade para o transplante hepático, de forma que a inelegibilidade deve ser avaliada por equipe transplantadora experiente diante de múltiplos marcadores de mau prognóstico.  

Leia também: Nova nomenclatura para doença hepática gordurosa

Conclusão e Mensagens práticas 

  • ACLF (acute-on-chronic liver failure) é uma síndrome de alta mortalidade, superior a 20% em 28 dias, que acomete pacientes cirróticos internados descompensados.  
  • A fisiopatologia se assemelha a da sepse e é pautada na resposta inflamatória exacerbada a estímulos endógenos e exógenos, conhecidos como DAMPs e PAMPs.  
  • A ferramenta diagnóstica mais bem aceita é o escore CLIF-C OF, que contempla as disfunções e falências envolvendo 6 sistemas orgânicos: rins, cérebro, pulmões, circulação, fígado e coagulação.  
  • A ferramenta prognóstica mais difundida é o escore CLIF-ACLF que contempla idade, contagem de leucócitos globais e os dados provenientes do escore CLIF-C OF.  
  • Pacientes com ACLF grau 2 ou 3 são graves, merecem consideração de tratamento em terapia intensiva, com vigilância para a necessidade de medidas substitutivas, bem como consideração para a alocação prioritária em fila de transplante hepático.  
  • A identificação de ACLF deve desencadear uma busca ativa por fatores desencadeantes, entre os quais os mais importantes são as infecções bacterianas e a hepatite aguda alcoólica.  
  • O suporte hepático bioartificial, plasmaférese e MARS (diálise com albumina) atualmente devem ser restritos aos ensaios clínicos. O emprego do filgrastim não encontra evidência robusta para a sua utilização rotineira.  
  • Todos os pacientes com ACLF devem ser avaliados sob o aspecto nutricional, com alvo de dieta hipercalórica e normoproteica, com preferência pela via oral.

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