Choque séptico na cirrose: qual deve ser o alvo de pressão arterial média?

Na abordagem geral do choque séptico, preconiza-se, a ressuscitação hemodinâmica, visando garantir a adequada perfusão dos órgãos-alvo.  

As infecções representam uma das principais causas de descompensação aguda das hepatopatias crônicas, representando o gatilho mais proeminente da insuficiência hepática crônica agudizada (ACLF). Na abordagem geral do choque séptico, em conformidade com a Campanha de Sobrevivência à Sepse, preconiza-se, além da pronta antibioticoterapia, a ressuscitação hemodinâmica, com objetivo principal de garantir a adequada perfusão dos órgãos-alvo.  

A expansão volêmica, seja com cristaloides (30 mL/kg) ou com albumina a 5% nos pacientes cirróticos, associada ao emprego de terapia vasopressora, tendo como primeira escolha a noradrenalina, representam o alicerce do suporte hemodinâmico. O alvo de pressão arterial média (PAM) habitualmente recomendado é entre 65 e 70 mmHg, com evidências de que um alvo mais elevado, entre 80 e 85 mmHg, possa ser útil na preservação da perfusão renal em pacientes hipertensos crônicos.  

No cenário da doença hepática crônica avançada (DHCA), alguns estudos com ênfase na síndrome hepatorrenal têm demonstrado que um alvo de PAM mais elevado pode se traduzir em melhora dos desfechos renais. A disfunção circulatória do cirrótico (DCC), caracterizada pela queda da resistência vascular periférica por vasodilatação esplâncnica e sistêmica, implica em circulação hiperdinâmica e consequente insuficiência cardíaca de alto débito. A perfusão renal, por sua vez, torna-se reduzida, gerando ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, que promove vasoconstrição do leito vascular renal. Soma-se à DCC o aumento da pressão intra-abdominal resultante da ascite moderada a grave, comumente presente nos pacientes com DHCA. Dessa forma, é possível compreender a maior vulnerabilidade renal dos cirróticos na vigência de choque séptico.   

O estudo TARGET-C, publicado por Maiwall e colaboradores no Journal of Hepatology em abril de 2023, testou se almejar um alvo mais elevado de PAM em pacientes cirróticos com choque séptico se correlaciona a melhora de desfechos relevantes.  

Saiba mais: Diagnóstico e manejo de cirrose hepática

Metodologia 

Trata-se de um estudo prospectivo, unicêntrico, aberto e randomizado, realizado entre setembro de 2018 e março de 2021 e que selecionou adultos cirróticos a partir de 18 anos, internados em centro de terapia intensiva hepático (CTI-H) para o manejo de choque séptico e injúria renal aguda (IRA) no Instituto de Ciências Hepatobiliares de Nova Delhi. 

Os pacientes foram alocados no grupo intervenção, com alvo de PAM entre 80 e 85 mmHg; ou no grupo controle, com alvo de PAM entre 60 e 65 mmHg, com monitorização contínua da PAM por meio de linhas arteriais, principalmente inseridas em artérias radiais. 

O desfecho primário foi sobrevida em 28 dias, enquanto os desfechos secundários incluíram reversão do choque e da IRA, hipotensão intradialítica, eventos adversos, escore de SOFA, duração da ventilação mecânica e permanência em CTI-H.  

Foram excluídos os pacientes com choque refratário, portadores de doenças cardiopulmonares graves, gestantes e moribundos com sobrevida estimada inferior a 24 horas.  

Resultados 

Foram triados 604 pacientes, entre os quais 150 foram randomizados, perfazendo 75 em cada grupo.  

A média de idade foi de 46 anos, com predomínio de homens (89%) e etiologia alcoólica da hepatopatia (65%), sendo o escore de MELD médio à alocação de 32 e SOFA de 12 pontos.   

As principais infecções foram as pneumonias (77% no grupo intervenção e 64% no grupo controle), seguidas por peritonite bacteriana espontânea (7% no grupo intervenção e 12% no grupo controle) e infecções do trato urinário (5% no grupo intervenção e 1,3% no grupo controle).  

A mortalidade em 28 dias não apresentou diferença significativa entre os grupos intervenção e controle (56% Vs 65%, com p = 0,54). Os dois principais preditores de mortalidade foram o tempo para a reversão do choque, sendo que cada hora de atraso se associou ao aumento da mortalidade em 2%; e a recuperação da IRA em 5 dias (HR 0,53 – IC 95%: 0,34 a 0,81, p = 0,004).  

Em relação à hipotensão intradialítica, houve redução consistente de sua incidência no grupo intervenção: 7% Vs 48% (p < 0,001) na análise de intenção de tratamento, alavancada para 4% Vs 53% (p < 0,001) na análise por protocolo. Embora a hipotensão dialítica não possa ser considerada um desfecho bruto, se associa a eventos adversos cardiovasculares, prejudica a perfusão cerebral e dificulta a recuperação da função renal.    

A reversão de IRA em 5 dias alcançou significância estatística somente na análise por protocolo (53% Vs 31%, p = 0,018), mas não se traduziu em redução de demanda por terapia renal substitutiva.  

Em relação aos demais desfechos secundários, incluindo taxa de reversão do choque, evolução de escores prognósticos (SOFA e CLIF-ACLF), duração da ventilação mecânica e tempo de permanência em CTI-H, o alvo mais elevado de PAM não promoveu qualquer modificação.  

Por fim, os eventos adversos que demandaram violação do protocolo foram mais frequentes no grupo intervenção: 24% Vs 10,6% (p = 0,03), incluindo eventos graves, como isquemia digital, isquemia mesentérica e taquiarritmias. Em análise multivariada os preditores para a ocorrência de eventos adversos incluíram o escore SOFA elevado (OR 1,28), uso de terlipressina (OR 6,72), hipernatremia (OR 1,08) e randomização para o grupo intervenção (OR 3,21).  

Leia também: Manejo das complicações relacionadas à cirrose hepática

Conclusão e Mensagens práticas 

  • Os pacientes cirróticos com choque séptico que toleram um alvo de pressão arterial média (PAM) mais elevado (80 a 85 mmHg) não tiveram qualquer impacto no desfecho primário: sobrevida em 28 dias.  
  • O grupo intervenção apresentou melhores desfechos renais, caracterizados por maior taxa de recuperação da injúria renal aguda (IRA) em 5 dias e menor incidência de hipotensão intradialítica. 
  • Os eventos adversos relacionados à intervenção podem ser graves, incluindo isquemia digital, isquemia mesentérica e taquiarritmias. 
  • As principais limitações do estudo incluem a unicentricidade, que impede a generalização dos resultados para outras populações; a ausência de dados ecocardiográficos, que podem ter contribuído para a inadequada classificação do choque; bem como a indisponibilidade da pressão intra-abdominal, que inviabilizou o direcionamento de alvo de PAM baseado na pressão de perfusão renal. 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Maiwall, R e col. A randomised-controlled trial (TARGET-C) of high vs. low target mean arterial pressure in patients with cirrhosis and septic shock. Journal of Hepatology, April 2023, vol. 79, 349-361, .DOI: 10.1016/j.jhep.2023.04.006