Desfechos neurocognitivos em crianças após doença crítica em UTIP

A mortalidade de crianças graves em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) diminuiu para menos de 3% nas últimas décadas.

Com a evolução dos cuidados intensivos pediátricos e consequente redução da mortalidade, muitos pacientes são acometidos pela “síndrome pós-terapia intensiva em pediatria” (Post-Intensive Care Syndrome in Pediatrics – PICS-p), conceito referente a morbidades sofridas pelos sobreviventes de UTIP. A PICS-p inclui domínios físicos, emocionais, neurocognitivos e sociais, tanto em crianças como em suas famílias.

Recentemente, o Journal of Intensive Care Medicine publicou uma revisão de escopo cujo objetivo foi mapear a literatura sobre avaliação de desfechos neurocognitivos em sobreviventes de UTIP. Os objetivos secundários dos pesquisadores foram identificar lacunas na literatura e fornecer dados para o desenvolvimento de um Conjunto de Medidas Básicas de Desfechos (Core Outcome Measures Set – COMS) no domínio.

Saiba mais: WFPICCS 2022: Desfechos funcionais de longo prazo em familiares e crianças sobreviventes de UTIP

Desfechos neurocognitivos em crianças após doença crítica em UTIP

Metodologia

Para entender melhor o panorama dos desfechos neurocognitivos pós-doença crítica, 75 médicos colaboraram para realizar a revisão. Eles eram do Pediatric Outcomes STudies after PICU (POST-PICU) Investigators, subgrupo da rede Pediatric Acute Lung Injury and Sepsis Investigators (PALISI), e do Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network (CPCCRN).

Foi conduzida uma análise planejada, a priori, dos dados de uma revisão geral de escopo dos desfechos funcionais da PICS-p. Um bibliotecário médico consultou bancos de dados e registros de estudos em língua inglesa publicados no período de 1970 a 2017 para identificar manuscritos que relatavam a PICS-p. Além disso, a extração detalhada de dados para desfechos neurocognitivos foi realizada com foco nas características do estudo, instrumentos usados e populações.

Resultados

Em 183 manuscritos, foram encontrados 114 instrumentos que avaliaram a função neurocognitiva. Um total de 83% dos artigos foi publicado após 2000. Foi relatada uma mediana de três instrumentos neurocognitivos por artigo. Avaliações neurológicas clínicas (21%), incluindo eletroencefalograma (EEG) e exames de imagens do sistema nervoso central, foram comumente usadas.

No entanto, os instrumentos mais usados para avaliação neurocognitiva foram:

  • Escalas Wechsler (45%) – instrumento mais usado em crianças mais velhas e sobreviventes de cardiopatia congênita (CC), traumatismo cranioencefálico (TCE), sepse e outras condições, como transplante de órgão sólido, trauma e falência respiratória aguda;
  • Pediatric Cerebral Performance Category (PCPC) (20%) – instrumento mais usado em crianças que apresentaram parada cardíaca;
  • Escalas de Desenvolvimento Infantil Bayley (16%) – instrumento mais usado em menores de dois anos;
  • Escalas de Comportamento Adaptativo de Vineland (11%).

O tamanho médio da amostra foi de 65 indivíduos. A maioria (63%) das avaliações foi realizada pessoalmente e os pais e responsáveis ​​(40%) forneceram as informações. Pacientes com CC (31%), TCE (24%) e parada cardíaca (15%) foram os mais avaliados. O sexo masculino predominou (59%) em estudos em que este dado demográfico foi relatado. Os adolescentes foram a faixa etária mais estudada (34%).

A função basal foi avaliada com pouca frequência (11% dos artigos), sendo que a maioria dos estudos observou as crianças em apenas um momento após a alta da UTIP. Ademais, as avaliações neurocognitivas foram frequentemente combinadas com outras – especialmente sociais (18%) e físicas (8%).

Houve variabilidade nos aspectos medidos do funcionamento neurocognitivo, além da heterogeneidade observada na escolha do instrumento: os instrumentos de desfecho mais usados avaliaram o quociente de inteligência (QI). A função cognitiva global e o quociente de desenvolvimento também foram avaliados com frequência. Aspectos adicionais da neurocognição incluíram avaliação do brincar, aprendizagem verbal e memória, atenção, funcionamento executivo e habilidades linguísticas.

As limitações descritas pelos pesquisadores foram:

  • Não foram incluídos trabalhos relevantes publicados em 2018;
  • O estudo é limitado a um resumo geral do trabalho neste domínio para fins de descrição e análise de lacunas. A análise dos desfechos, entre os estudos, não foi o foco;
  • Essa revisão reflete os vieses dos pesquisadores. A escolha dos instrumentos para este corpo de pesquisa foi em grande parte impulsionada por pesquisadores e clínicos da UTIP. Tais escolhas podem não refletir o que seria usado ou recomendado por pesquisadores de outras disciplinas, especialmente psicometristas e neuropsicólogos, e podem não refletir o que pacientes e familiares consideram importante. Da mesma forma, as escolhas metodológicas de pesquisa podem não refletir as experiências vividas pelos pacientes e familiares;
  • Por fim, os autores advertem contra a conclusão de que a representação dos instrumentos nesta revisão seja totalmente suficiente para informar o esforço do COMS.

Conclusões

A imensa maioria dos estudos foi quantitativa e observacional. Os resultados gerais demonstram um número crescente de publicações e de instrumentos utilizados ao longo do tempo; entretanto, quatro instrumentos e achados clínicos neurológicos compõem a maior proporção de avaliações. Os estudos tendiam a se concentrar em populações com comprometimento cognitivo antecipado. Pacientes com CC, TCE e parada cardíaca foram as populações mais visadas e o teste de QI foi realizado com mais frequência nos dois primeiros.

As análises foram realizadas no primeiro ano após a alta da UTIP com alguns, em grande parte em populações-alvo com lesão cerebral prevista, estendida por três anos ou mais. As avaliações de linha de base foram efetuadas em apenas alguns estudos.

Esses dados ressaltam que, embora possa haver pouco acordo sobre metodologias e foco desses estudos, há também um rico cenário de pesquisa sendo descrito. Por fim, esses estudos ressaltam o interesse de clínicos, pesquisadores, pacientes e familiares em compreender as possíveis sequelas da internação em UTIP.

Comentário final

Mesmo não fazendo parte dos objetivos do estudo, essa revisão nos faz refletir sobre quais devem ser as metas dos cuidados intensivos. Os propósitos do intensivista adulto e pediátrico devem ir além da sobrevivência e incluir uma colaboração interdisciplinar para prevenção e manejo de complicações não somente em curto, mas também em longo prazo.

Iniciativas atuais, como a proposta da “liberar” o paciente o mais rápido da UTIP (ICU Liberation, Society of Critical Care Medicine) têm sido cada vez mais difundidas, entretanto, sua adesão, na prática, é muito aquém da desejada.

Leia também: ADS 2022: a liberação da UTIP e a implementação do A-F bundle em crianças sob cuidados intensivos é viável

Para finalizar, gostaria de destacar a relevância da identificação do delirium em UTIP: a inclusão de sua avaliação tem sido vista como um parâmetro de qualidade de uma unidade intensiva, visto que estudos recentes têm mostrado associação a sequelas cognitivas em longo prazo (em crianças, acredita-se que esteja ligado a dificuldades de atenção e aprendizado e ao absenteísmo escolar).

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Biagas KV, Heneghan JA, Abu-Sultaneh S, et al. Scoping Review: Neurocognitive Outcome Assessments After Critical Illness in Children [published online ahead of print, 2022 Sep 7]. J Intensive Care Med. 2022;8850666221121567. DOI: 10.1177/08850666221121567