O curioso problema da superlotação nos serviços de Emergência do Brasil

A superlotação nos serviços de emergência parece ser um problema genuinamente brasileiro. Entretanto, este é, na verdade, um problema mundial.

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A superlotação nos serviços de emergência parece ser um problema genuinamente brasileiro. Entretanto, observando dados da literatura notamos que este é, na verdade, um problema mundial. Caracteriza-se pela ocupação de todos os leitos existentes no pronto-socorro (incluindo os de retaguarda), com expansão desorganizada de macas para os corredores e outros locais inapropriados como a própria recepção do setor.

Em geral, é mais notória nos serviços públicos, mas também está presente em vários serviços privados. Tornou-se até uma rotina placas na recepção com previsões cada mais longas de atendimento. Isto gera uma série de conflitos e tensões: equipe assistencial sobrecarregada, estafada, estressada. Pacientes e acompanhantes irritados e insatisfeitos. Tempo longo entre o atendimento inicial e a alta, com consequente baixa resolutividade e redução na qualidade do atendimento. Por ser a “porta de entrada” de vários hospitais e serviços de saúde, a emergência torna-se alvo também de exposição e desgaste da imagem do profissional assistencialista.

De acordo com um relatório da força-tarefa do Colégio Americano de Médicos de Emergência de 2008¹, o aglomerado de pessoas nos serviços de urgência pode ser definido como “quando não há espaço para atender a necessidades oportunas do próximo paciente que precisa de cuidados de emergência”, sendo fortemente relacionado, nas últimas décadas, a desfechos desfavoráveis para os pacientes. Segundo Bittencourt & Hortale², a superlotação pode também ser definida como situação que reflete a saturação do limite operacional nos serviços de emergências hospitalares.

DEFINIÇÃO DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA

De acordo com o Conselho Federal de Medicina, na Resolução n° 1451/1955, emergência é a constatação médica de condições de agravo à saúde que implicam em risco iminente de vida ou sofrimento intenso exigindo, portanto, tratamento médico imediato; a urgência é a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata.

O Ministério da Saúde (MS) do Brasil define o pronto-atendimento como um conjunto de elementos destinados a atender urgências dentro do horário de serviço do estabelecimento de saúde, sendo então o pronto-socorro um estabelecimento de saúde destinado a prestar assistência a doentes, com ou sem risco de vida, cujos agravos à saúde necessitam de atendimento imediato, funcionado durante 24 horas ao dia e dispondo de apenas de leitos de observação.

Como diferenciar urgência de emergência? Nem sempre é fácil. Para tanto, faz-se necessário utilização de algum instrumento ou ferramenta de triagem, separando o “joio do trigo”, o grave do não grave – quem corre risco imediato de morte daquele que tem uma patologia mais benigna.

hospitais

O PROBLEMA DA SUPERLOTAÇÃO

Estima-se que aproximadamente 114 milhões pessoas visitam as unidades de urgência hospitalares nos Estados Unidos³, evidenciando um aumento de mais de 2 milhões entre os anos de 1993 e 2003. Foi observado que, em 2002, 43% de todas as internações hospitalares nos Estados Unidos entraram através destas unidades. Conforme os relatos publicados, a alta demanda de usuários neste serviço tem sido um grande desafio no século XXI, crescente, inclusive, em termos de complexidade clínica e terapêutica, que não tem sido acompanhado pelo crescimento das unidades prestadoras de serviço, refletindo a incapacidade do sistema frente a limitação de recursos.

Terminamos de demonstrar uma grande justificativa para a superlotação: baixa oferta de portas de entrada, frente a demanda crescente de usuários. No nosso país temos diversas reportagens, de norte ao sul, de leste ao oeste, de diversos hospitais de qualidade (hospitais universitários ou hospitais-escola) que fecharam as portas das emergências por problemas de gestão, sobrecarregando as unidades que permaneceram abertas. Existem infelizmente outros problemas: o tempo de permanência na emergência é sim um grande marcador de superlotação. Ele reflete várias fragilidades das unidades:

– Resolutividade: métodos diagnósticos ausentes ou precários, número de salas de cirurgias e de equipes cirúrgicas verdadeiramente atuantes, corpo clínico e equipe assistencial motivada e proativa, dentre outros, compatibilidade entre a complexidade do hospital e a apresentada pelos usuários que demandam atendimentos, dentre outras;

– Gestão de leitos, fluxos e protocolos: uma equipe dedicada e treinada em gerir leitos, monitorar altas, resolver pendências verdadeiramente como “gerentes de um negócio” fazem a diferença neste cenário. O trabalho por metas e resultados otimiza os processos.

– Capacidade de expandir leitos (contingência): ocupar leitos não rotineiros, readaptar locais e equipes pode ser uma contingência bem-vinda em momentos críticos. Apoio de outras unidades hospitalares, com leitos compatíveis com o perfil de atendimento.

– Comunicação e trabalho em equipe: integração inter e intra-hospitalar com todos os setores e atores envolvidos (bioimagem, laboratório, internamento, higienização, segurança, serviço social, corpo clínico, enfermagem) é fundamental para otimização de diagnósticos, tratamentos e altas hospitalares em tempo hábil. Uso de meios de comunicação individuais e de grupos com celulares e similares também facilita a implantação e controle de processos.

Segundo meu amigo Welfane (um dos maiores especialistas em superlotação do país): “a superlotação é hoje um fenômeno de dificuldade de SAÍDA nos serviços de urgência por causa de problemas nos fluxos internos dos hospitais. Não culpe a atenção primária pela sua superlotação. A solução está próxima a você. Aprenda a medir corretamente se o serviço está superlotado ou superlotando. Se o problema for por excesso de demanda ele é mais fácil de ser resolvido, se for (como são a maioria) por dificuldade de saída a solução é mais complexa.”

ACOLHIMENTO COM TRIAGEM

No passado, os usuários deste serviço possuíam como critério de atendimento a ordem de chegada, o que implicava, fatalmente, em maior morbimortalidade no serviço por ausência da assistência médica em tempo hábil. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) recomenda que, diante de uma situação em que a demanda por atendimento médico seja superior a capacidade do serviço de saúde, deve-se realizar uma triagem. Desse modo, após a admissão, o usuário é classificado de acordo com a gravidade de suas queixas para, a partir disso, ter acesso aos cuidados necessários.

Neste cenário, por exemplo, surge o Acolhimento com Classificação de Risco (ACCR), dentro da Política HumanizaSUS, com o objetivo de reorganizar o fluxo, garantir o atendimento instantâneo ao paciente grave, comunicar ao usuário que não apresenta risco iminente de vida e a sua família quanto tempo aproximadamente irão aguardar, proporcionar melhores condições de trabalho a equipe, qualidade e resolutividade do atendimento12-13.

No nosso país, o “Sistema Manchester” de Classificação de Risco é o mais utilizado e preconizado na maioria das unidades da Rede de Atenção às Urgências e Emergências, com o objetivo de determinar a ordem de atendimento ao usuário, em conformidade com a gravidade da sua condição clínica, garantindo que o primeiro atendimento médico ocorra em tempo ideal, segundo a estratificação de cores, que sugerem níveis de gravidade clínica particulares e metas de tempo a serem atingidas.

Além disso, após a triagem e atendimento médico, os usuários são direcionados a áreas/eixos ou salas, que são partes da estrutura destes serviços, como: a sala vermelha (onde são assistidos os pacientes em condições de emergências e realizados procedimentos especiais invasivos), a sala amarela (onde repousam os doentes que apesar de estáveis necessitam de assistência), a sala verde (que geralmente possuem alas onde os pacientes são distribuídos por sexo e idade) e o eixo azul que é dividido em planos – 1 (composto pela recepção, salas para a realização do acolhimento e classificação de risco), 2 (consultórios médicos) e 3 (ambientes para procedimentos médicos e enfermagem)12.

Utilizando-se de ferramentas para triagem dos pacientes poderemos destinar a melhor tecnologia e ambiente para o paciente apropriado (pacientes vermelhos – mais graves, com risco iminente de morte – atendimento imediato em salas de reanimação e estabilização, até o paciente verde – estável, com atendimento menos prioritário em consultórios médicos). Imaginar hoje uma emergência sem o ACCR é o mesmo que “atirar no escuro”, podendo ocasionar a alocação de um paciente grave na zona verde e vice-versa, ou seja, expor vidas desnecessariamente.

Nos Estados Unidos foi criado em 1988 o “Emergency Severity Index – ESI” frente a situação da superlotação nas urgências e emergências sendo, basicamente, uma triagem de classificação de risco, com o objetivo de organizar a prioridade de atendimento na emergência de acordo com a gravidade dos pacientes em cinco categorias, determinando o tempo máximo aguardando assistência médica em cada uma delas. O diferencial desta estratégia em relação a outras triagens é que ela leva em consideração o que será gasto com cada doente até que se determine se o mesmo será internado ou receberá alta16. Pensar em custos é, também, filtrar a quantidade de exames ou procedimentos desnecessários a serem realizados, gerando economia em relação gastos onerados do sistema. Economia esta que, se bem planejada, pode impactar positivamente no serviço, considerando uma boa gerência e administração dos recursos financeiros, com benefícios a própria instituição ou sistema de modo geral.

Faz-se necessário fortalecer, especificadamente, no âmbito da atenção hospitalar, na urgência e emergência, nos prontos-socorros, nos pronto-atendimentos e também na assistência pré-hospitalar, que deve (1) acolher a demanda por meio de critérios de avaliação de risco, garantindo o acesso referenciado aos demais níveis de assistência, (2) o comprometimento com a referência e a contra-referência, aumentando a resolução da urgência e emergência, provendo o acesso à estrutura hospitalar e a transferência segura, conforme a necessidade dos usuários, e (3) a definição e seguimento de protocolos clínicos, com o objetivo de reduzir a quantidade de intervenções desnecessárias e respeitando as diferenças e as necessidades do indivíduo17.

Ao acolher a demanda por critérios de classificação de risco, busca-se otimizar o tempo de atendimento para cada paciente, de acordo com a sua situação de risco e agravos. Assim como direcionar demandas de menores complexidades para o nível ambulatorial em marcações no próprio hospital, por exemplo, ou encaminhamentos para outras unidades e centros de saúde, sendo uma tentativa de amenizar o fluxo de usuários que chegam aos hospitais em busca de atendimento, diminuindo superlotações desnecessárias, proporcionando a garantia de assistência em tempo hábil para casos em que há, de fato, risco iminente de agravo a saúde.

No Reino Unido, a “regra das 4h”, implantada em 2004 nos serviços de urgência, preconiza que os pacientes que se apresentem a estas unidades sejam admitidos ou tenham alta hospitalar em até 4 horas após a chegada ao serviço, o que tem reduzido o período de permanência hospitalar nestas unidades. Segundo Somma12, devido ao êxito obtido pela implantação da regra britânica, a Austrália Ocidental resolveu instalar a “regra das 4h” em 2008, entretanto, apesar da redução na taxa de mortalidade e do tempo de espera para o primeiro atendimento, elevou a quantidade de pacientes internados, resultou maior estresse para a equipe assistente da enfermagem devido a maior sobrecarga de trabalho.

Gulacti & Lok20 realizaram um estudo prospectivo randomizado em Adıyaman, uma cidade e distrito situada no sudeste da Turquia, avaliando o tempo de permanência em Departamentos de Emergências e o efeito do uso de aplicativos de mensagens seguras (WhatsApp) em consultas médicas e tempo do atendimento. Os autores basearam-se no fato de que, frequentemente, durante uma consulta nestas unidades, os médicos de plantão têm por hábito a obtenção de opinião de outras especialidades para a definição diagnóstica, condutas e planejamento terapêutico. Nesta perspectiva, ficou evidenciado uma redução total dos tempos de permanência e também de consulta, além de reduzir quase metade dos casos que aguardavam por interconsultas sendo mais uma possibilidade estratégica para a redução da superlotação nas emergências.

CONCLUSÃO

A redução da superlotação dos serviços de emergências exige a aplicação de um planejamento estratégico da gestão hospitalar, envolvendo todo corpo clínico e de enfermagem, da recepção à diretoria, levantando dificuldades e buscando soluções para aumentar a resolutividade da unidade, elevando o giro-leito e salvando mais vidas. Por tratar-se de um problema multifatorial, estratégias em diferentes campos de ação precisam ser implementadas.

Medicina à distância: seria o fim dos hospitais?

 

Referências:

  1. Chiu I-M, Lin Y-R, Syue Y-J, Kung C-T, Wu K-H, Li C-J. The influence of crowding on clinical practice in the emergency department. Am J Emerg Med. 2017;0(0):5. doi:10.1016/j.ajem.2017.07.011.
  2. Bittencourt RJ, Hortale VA. Intervenções para solucionar a superlotação nos serviços de emergência hospitalar: uma revisão sistemática. Cad Saude Publica. 2009;25(7):1439-1454. doi:10.1590/S0102-311X2009000700002.
  3. Medicine I of. Hospital-Based Emergency Care : At the Breaking Point. Washington, D.C.: National Academies Press; 2007. doi:10.17226/11621.
  4. Kellermann AL. Crisis in the Emergency Department. N Engl J Med. 2006;355(13):1300-1303. doi:10.1056/NEJMp068194.
  5. Silva SF da. Organização de redes regionalizadas e integradas de atenção à saúde: desafios do Sistema Único de Saúde (Brasil). Cien Saude Colet. 2011;16(6):2753-2762. doi:10.1590/S1413-81232011000600014.
  6. Mendes EV. As Redes de Atenção À Saúde. Vol 15.; 2011. doi:10.1590/S1413-81232010000500005.
  7. Petry D. Análise de Implantação Do Kanban Em Hospitais Do Programa SOS Emergências.; 2016.
  8. Brasil. Ministério da Saúde. Manual Instrutivo Da Rede de Atenção Às Urgências E Emergências No Sistema Único de Saúde (SUS). 1a. (Editora do Ministério da Saúde., ed.). Brasília; 2013.
  9. Brasil M da S. Rede de Atenção Às Urgências E Emergências: Avaliação Da Implantação E Do Desempenho Das Unidades de Pronto Atendimento (UPAS). 1a. (Brasília : CONASS, ed.).; 2015.
  10. Santos CAS, Espírito Santo E. Análise das causas e consequências da superlotação dos serviços de emergências hospitalares: uma revisão bibliográfica. Rev Saúde e Desenvolv. 2014;5(3):31-44.
  11. DINIZ JS, FERREIRA K da S. Superlotação nos Serviços Hospitalares de Urgência. Repositório Inst Tiradentes. September 2015:27.
  12. Brasil M da S. Acolhimento E Classificação de Risco Nos Serviços de Urgência. 1a. (Editora Ministério da Saúde, ed.). Brasília; 2009.
  13. NEGRI SC, CAMPOS MD. O uso da ferramenta kanban para o controle da permanência dos usuários SUS. Convibra. 2011:13.
  14. Legramante JM, Morciano L, Lucaroni F, et al. Frequent Use of Emergency Departments by the Elderly Population When Continuing Care Is Not Well Established. PLoS One. 2016;11(12):11. doi:10.1371/journal.pone.0165939.
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  17. Brasil M da S. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: A Humanização Como Eixo Norteador Das Práticas de Atenção E Gestão Em Todas as Instâncias Do SUS. 1a. (Editora MS, ed.). Brasília; 2004.
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