Púrpura trombocitopênica trombótica: você sabe identificar e tratar?

A terapia de primeira linha da púrpura trombocitopênica trombótica baseia-se na plasmaferese terapêutica com uso de plasma de doador saudável.

A púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) é uma microangiopatia trombótica rara e potencialmente fatal caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, trombocitopenia grave e isquemia de órgãos, fisiopatologicamente marcada pela formação de trombos ricos em plaquetas de maneira disseminada na microvasculatura (arteríolas e vênulas).

A PTT está especificamente relacionada à deficiência severa de ADAMTS13, uma desintegrina e metaloprotease específica para clivagem do fator de von Willebrand (VWF), sendo esse uma glicoproteína de estrutura multimérica crucial para a adesão e agregação plaquetária em locais de alto fluxo sanguíneo expostos ao estresse de cisalhamento.   

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A deficiência de ADAMTS13 é mais frequentemente adquirida, secundária à formação de autoanticorpos contra essa protease. No entanto, em alguns raros casos, essa deficiência pode ter característica hereditária, por meio de mutações no gene codificador da ADAMTS13 (chamado de Síndrome de Upshaw-Schulman). Apesar do manejo adequado, essa patologia pode apresentar taxas de mortalidade que variam entre 10% e 20%. Quando não identificada e abordada apropriadamente, essa mortalidade pode chegar a 90% dos pacientes.  

Púrpura trombocitopênica trombótica

Epidemiologia e diagnóstico da púrpura trombocitopênica trombótica

A etiologia autoimune é adquirida e mais prevalente na vida adulta, correspondendo a aproximadamente 90% dos casos de púrpura trombocitopênica trombótica na prática clínica. Por sua vez, a forma hereditária manifesta-se predominantemente na infância, mais comumente no período neonatal ou em crianças com menos de 10 anos, sendo raros os casos em adolescentes.

A PTT é 2 vezes mais frequente em pacientes do sexo feminino e o curso da doença é marcado por recaídas e exacerbações após o tratamento inicial. A prevalência é de, aproximadamente, 10 casos a cada 1 milhão de pessoas, com uma incidência anual de cerca de um novo caso por milhão de pessoas.  

As condições clínicas mais frequentemente associadas à púrpura trombocitopênica trombótica, podendo funcionar como gatilhos para o desenvolvimento da doença são: (1) infecções bacterianas; (2) doenças autoimunes (exemplo: lúpus eritematoso sistêmico, doença de Sjogren); (3) gravidez; (4) medicamentos como a mitomicina C, ciclosporina, quininos, clopidogrel e ticlopidina; (5) infecção pelo vírus HIV; (6) pancreatite; (7) neoplasias; (8) transplante de órgãos sólidos e medula óssea. 

Sinais e sintomas da púrpura trombocitopênica trombótica

As manifestações clínicas estão geralmente relacionadas à microtrombose sistêmica de arteríolas e capilares terminais. Atualmente, a histórica pêntade clínica de febre, trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática, sintomas neurológicos e insuficiência renal, que costumava definir a PTT, parece obsoleta. Vários estudos de coorte demonstraram claramente que esses 5 sintomas estavam presentes em menos de 10% dos pacientes com a doença na fase aguda.  

Os sinais laboratoriais mais frequentes da PTT são a trombocitopenia grave (tipicamente < 30 x 109/L) e a anemia hemolítica microangiopática, caracterizada por uma anemia normocrômica, normocítica, hiperproliferativa (reticulócitos > 100.000/µL), haptoglobina baixa ou indetectável, desidrogenase lática (LDH) elevado e coombs direto/indireto negativos associados a esquizócitos no esfregaço de sangue periférico.  

Os sintomas clínicos relacionados a essas alterações laboratoriais como hemorragias mucocutâneas, adinamia, dispneia, prurido e icterícia podem estar associados. Os sintomas relacionados à isquemia/infarto se relacionam aos órgãos afetados, sendo o sistema nervoso central classicamente envolvido na doença.

Cerca de 60% dos pacientes abrem o quadro clínico agudo com sintomas neurológicos, variando desde dor de cabeça e confusão mental a acidente vascular cerebral, rebaixamento do nível de consciência e convulsões. A isquemia cardíaca também é frequente (aproximadamente 25% dos pacientes), assim como a isquemia mesentérica (cerca de 35%).  

As manifestações renais consistem principalmente em proteinúria/hematúria isolada. A insuficiência renal aguda, ainda que parte da clássica pêntade, é incomum na PTT. No entanto, a insuficiência renal aguda não exclui o diagnóstico de PTT, pois alguns estudos envolvendo pacientes com quadros graves relataram incidência de 10% a 27% de lesão renal aguda.  

O diagnóstico específico dessa condição se dá pela mensuração da atividade da ADAMTS13. Resultados inferiores a 10% são específicos do diagnóstico de púrpura trombocitopênica trombótica, sendo este o único marcador biológico específico. A avaliação da presença de autoanticorpos da classe IgG anti-ADAMTS13 será positiva em aproximadamente 75% dos casos de PTT durante a fase aguda.

Além disso, IgG anti-ADAMTS13 pode não ser detectável em cerca de 20% a 25% dos casos. Nos casos hereditários, o sequenciamento do gene ADAMTS13 será necessário. As provas coagulométricas geralmente estão com seus valores dentro da faixa de referência. Infelizmente, os ensaios específicos não estão disponíveis na maioria dos laboratórios de análises clínicas e, portanto, nos casos de urgência e emergência, uma conduta deve ser tomada nos casos altamente suspeitos. 

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Escore PLASMIC  

O escore PLASMIC é calculado com base em achados na apresentação e prediz a probabilidade de atividade de ADAMTS13 ser inferior ou igual a 10%, auxiliando no diagnóstico presumível de púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) em cenários clínicos apropriados. A presença de esquizócitos periféricos acima do ponto de corte de 1% é necessária para aplicação desse escore. Atribui-se um ponto para cada uma das seguintes características:  

  • Contagem de plaquetas inferior a 30.000/microlitro 
  • Presença de hemólise (contagem de reticulócitos superior a 2,5%, haptoglobina indetectável ou bilirrubina indireta superior a 2 mg/dL) 
  • Volume corpuscular médio (VCM) inferior a 90 fL 
  • Razão internacional normalizada (INR) inferior a 1,5 
  • Creatinina inferior a 2,0 mg/dL 
  • Ausência de câncer 
  • Ausência de transplante sólido de órgão ou células-tronco

Um escore superior a 5 sugere o diagnóstico de PTT na impossibilidade de mensuração da atividade da ADAMTS13 com os testes padronizados internacionalmente. Este escore possui alto valor preditivo negativo, e é recomendado como uma ferramenta de triagem para pacientes que provavelmente não têm PTT.  

Tratamento de primeira linha para a púrpura trombocitopênica trombótica

A terapia de primeira linha da PTT aguda baseia-se na plasmaferese terapêutica com uso de plasma de doador saudável, associada ou não a corticosteroides (geralmente 1,5 vezes a volemia plasmática do paciente para as primeiras intervenções, seguido por uma vez, posteriormente). A troca de plasma é realizada diariamente até que os sinais/sintomas relacionadas ao comprometimento dos órgãos-alvo se resolvam. Alguns grupos sugerem diminuir progressivamente as sessões de troca de plasma, tipicamente dentro de três semanas, para evitar exacerbações graves.   

Corticosteroides: Na ausência de estudos baseados em evidências, o uso empírico é associar sistematicamente corticosteroides à troca de plasma na ausência de contraindicação óbvia. No entanto, o nível de evidência sobre a eficácia dos corticosteroides no tratamento da PTT permanece bastante baixo.  

O anticorpo monoclonal sintético anti-CD20 Rituximabe pode ser utilizado como adjuvante em casos não responsivos ou de exacerbação da doença. No entanto, sua aplicação é mais bem estabelecida como tratamento preemptivo, durante recaídas, quando o paciente apresenta nova atividade de ADAMTS13 < 10% após ter atingido resposta completa. Outro contexto de uso é no paciente que apresentou resposta completa, mas mantém níveis muito baixos de atividade da ADAMTS13 em monitorizações seriadas.  

Como mencionado anteriormente, na grande maioria dos atendimentos de urgência e emergência, não teremos disponível a mensuração da atividade da ADAMTS13, e isso não deve ser um limitador para se instaurar uma conduta. O manejo terapêutico geralmente é decidido com base nos sinais/sintomas clínicos e alterações laboratoriais não específicas, e não nos resultados de ADAMTS13. No entanto, a investigação de ADAMTS13 permanece crucial para confirmar definitivamente o diagnóstico de PTT. Outras microangiopatias trombóticas geralmente não respondem bem à plasmaferese terapêutica, com exceção de alguns casos de síndrome HELLP.  

Suporte transfusional: a transfusão de concentrados de hemácias pode ser administrada se houver indicação clínica, enquanto a transfusão de plaquetas é considerada controversa e geralmente contraindicada, a menos que haja sangramento importante. A transfusão de plasma fresco congelado sem realização do procedimento de troca não é um tratamento adequado. Pode ser utilizada como medida temporária em pacientes que não podem receber troca de plasma imediatamente.

Apesar de alguns dados em literatura indicarem eficácia semelhante entre os procedimentos, o volume total de plasma a ser infundido inviabiliza o tratamento na prática. Na PTT hereditária, infusões de plasma geralmente são suficientes para reverter as características clínicas. Apenas alguns pacientes com a Síndrome de Upshaw-Schulman podem depender de infusões regulares de plasma a cada duas a três semanas.  

Em PTT refratária ou não responsiva, terapias mais intensivas, incluindo troca de plasma duas vezes ao dia, pulsos de ciclofosfamida, vincristina, ciclosporina ou esplenectomia de resgate, são consideradas.  

Avaliação de resposta  

O monitoramento da resposta é essencial para determinar a duração da troca de plasma. Tipicamente, os marcadores de hemólise são verificados diariamente. A troca de plasma geralmente é interrompida quando os níveis de plaquetas se estabilizam acima de 150.000/microlitro por mais de 48 horas.  

Uma resposta completa ao tratamento é definida por uma contagem de plaquetas acima de 150.000/microlitro por 2 dias consecutivos, juntamente com LDH normal ou normalizando e recuperação clínica. Uma resposta duradoura ao tratamento dura pelo menos 30 dias após a descontinuação da troca de plasma. A recorrência da doença dentro de 30 dias após atingir a resposta ao tratamento define uma exacerbação, e a recorrência da doença 30 dias ou mais após atingir a resposta ao tratamento é uma recaída. A doença refratária é definida pela ausência de resposta ao tratamento até o dia 30 ou ausência de resposta duradoura até o dia 60.  

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Diagnóstico diferencial   

  • Síndrome Hemolítico Urêmica (SHU) típica/atípica 
  • Microangiopatia associada ao transplante de medula óssea 
  • Microangiopatia trombótica associada ao tacrolimus 
  • Microangiopatia trombótica associada à neoplasia 
  • Síndrome HELLP 
  • Anemias hemolíticas e trombocitopenias imunes  
  • Manifestações vasculares associadas a doenças autoimunes  

Novas terapias  

Novos medicamentos, incluindo N-acetilcisteína, bortezomibe, ADAMTS13 recombinante e caplacizumabe, apresentam perspectivas promissoras no manejo da púrpura trombocitopênica trombótica (PTT). 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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