Quais intervenções atenuam o sofrimento moral dos médicos residentes de pediatria?

Estudo buscou verificar se adicionar apoio a alguns cenários vividos pelos residentes de Pediatria reduziria seu sofrimento moral.

Os médicos residentes de Pediatria apresentam alto risco de sofrimento moral, que é o sofrimento psicológico, fisiológico e emocional vivenciado no trabalho quando se sentem impotentes ou incapazes de fazer o que acham certo por conta da hierarquia, principalmente quando há falta de comunicação e colaboração no ambiente do local da Residência Médica. O sofrimento moral desses residentes está mais relacionado a inexperiência, preocupações em falar a verdade, respeito aos desejos dos pacientes, preocupação sobre sua competência e medo de não conseguir evitar dano.

Leia também: Residência médica: Quais são os direitos dos residentes

Esse sofrimento pode levar a síndrome de Burnout e até suicídio. Em junho de 2023, Layman e colaboradores publicaram seu estudo no jornal Pediatrics que teve como objetivo principal verificar se adicionar apoio a alguns cenários vividos pelos residentes de Pediatria reduziria seu sofrimento moral e como objetivo secundário comparar a eficácia de declarações de apoio por um médico supervisor e da presença de elementos na estrutura do programa de residência/do hospital. Neste artigo, destacamos as principais contribuições desse estudo.

Quais intervenções atenuam o sofrimento moral dos médicos residentes de pediatria

Método

O tipo de estudo foi experimental randomizado com amostra dividida feito com residentes de pediatria, que eram expostos a um questionário com seis casos clínicos construídos com o intuito de provocar sofrimento moral. Para cada caso, os participantes foram designados aleatoriamente para ver 1 de 2 versões que variavam apenas sobre se eles incluíam apoio/declaração de apoio do médico supervisor (três primeiros casos) ou elementos da estrutura do programa de residência/do hospital (últimos três casos). Depois de ler cada um dos seis casos, os participantes relatavam seu nível de sofrimento moral associado. A escala gradativa de Likert foi usada para medir o grau de estresse moral encontrado em cada caso clínico sendo 1 igual a “discordo totalmente” até 5, considerado como “concordo totalmente”. Foram usados testes bicaudais com significância definida em P < 0,05 para comparar os grupos (versão com apoio e sem apoio). Usaram o teste Wilcoxon-Mann-Whitney para avaliar as diferenças nas respostas entre os grupos. Também calcularam a medida do tamanho de efeito d de Cohen para determinar quantos desvios-padrão (DP) de diferença existe no grau de sofrimento moral relatado entre as versões do caso.

Os primeiros três casos avaliaram o efeito de declarações de apoio por um médico supervisor e os três últimos avaliaram a estrutura do programa de residência/ do hospital.

No 1º caso clínico, o médico residente de Pediatria estava de plantão na Emergência pronto para fazer uma punção lombar em um neonato, seria a 2ª vez que o residente faria uma punção lombar na vida e o responsável do neonato o questiona quantas vezes ele já fez aquele procedimento na vida. Na versão sem apoio, o residente não responderia diretamente e o médico supervisor não fala coisa alguma. Na versão com apoio, o médico supervisor responde: “Eu já fiz muitas vezes este procedimento e estarei aqui supervisionando o procedimento inteiro.”

No 2º caso clínico, o residente não se sente confortável para passar um cateter nasoenteral. Na versão sem apoio, o supervisor afirma que a tarefa é fácil e que ele pode pedir ajuda se necessário. Na versão com apoio, o supervisor se oferece para estar presente no procedimento.

No 3º caso, o residente é encarregado de coordenar uma traqueostomia para uma criança com comprometimento neurológico grave, sendo que o residente acredita ser um cuidado fútil. Na versão sem apoio, o supervisor não aborda as preocupações do residente. Na versão com apoio, o supervisor descreve o histórico de discussões com a família, demonstrando que a decisão da família é informada e ponderada.

No 4º caso, o residente descobre que outro residente cometeu um erro de medicação. Na versão sem apoio, o residente vivencia sozinho a situação e opta por não falar a questão com o outro residente. Na versão com apoio, o sistema de atendimento possui um processo de revisão de erros.

No 5º caso, o residente deve supervisionar a colocação de cateter nasogástrico em um paciente com anorexia nervosa contra a vontade do paciente. Na versão com apoio, o residente teve a experiência prévia na sua residência médica de passar um tempo em uma clínica de acompanhamento de transtornos alimentares e conheceu pacientes que se recuperaram da anorexia. A versão sem apoio não oferecia essa experiência durante a Residência Médica.

No 6º caso, um pai de um neonato do berçário recusa a aplicação de vitamina K profilática para seu filho. Na versão sem apoio, o médico supervisor orienta o residente a documentar a recusa no prontuário médico. Na versão com apoio, o supervisor fornece material educativo sobre a importância da vitamina K profilática na prevenção de doença hemorrágica do neonato para o residente partilhar com os responsáveis.

Saiba mais: Competição com a rede privada e condições de trabalho afastam residentes do SUS

Foram coletadas informações demográficas dos residentes assim como características dos programas de Residência Médica que frequentavam e qual ano da Residência estavam cursando. Os residentes foram randomizados em grupos conforme características demográficas.

Resultados

Duzentos e vinte residentes de Pediatria de cinco programas de Residência Médica participaram do estudo até o final, sendo que os questionários foram enviados para 607 residentes. A randomização foi bem-sucedida sem diferenças significativas entre os grupos. A maioria dos participantes eram do sexo feminino (78%) semelhante à estatística de residentes do sexo feminino de Pediatria dos Estados Unidos (71%).

Os residentes confirmaram que os casos representavam cenários comuns que causam sofrimento moral. Mais de 70% dos participantes relataram ter encontrado uma situação semelhante a todos os casos com exceção do 2º caso durante sua Residência. A média de sofrimento moral de todos os casos foi de 3,5 (desvio padrão -DP 0,63) na escala Likert.

O maior sofrimento moral relatado foi no 3º caso (3,9, DP: 1,1), independente da versão apresentada, no qual o residente coordena a realização de uma traqueostomia para uma criança com comprometimento grave e considera ser um cuidado fútil, seguido dos seguintes casos: 1º – punção lombar (3,8, SD:0,9), 6º – vitamina K (3,6, SD:1,2), 2º – cateter nasoenteral (3,6, SD:1,2), 5º – passagem de cateter nasogástrico em paciente com anorexia (3,4, SD:1,1) e 4º – erro de medicação (3,3, DP:1,1).

Quanto ao desfecho primário, as versões com apoio do 1º ao 4º caso reduziram significativamente o sofrimento moral com P valor £ 0,006 com as seguintes medidas:

  • 1º caso: o médico supervisor respondendo ao responsável da criança na punção lombar que ele próprio tinha experiência e supervisionaria a punção lombar, evitando a exposição da inexperiência habitual do residente (d de Cohen: 0,45);
  • 2º caso: a oferta de real supervisão pelo médico supervisor na beira do leito na passagem de cateter nasoenteral (d de Cohen: 0,82);
  • 3º caso: o médico supervisor forneceu contexto adicional para o cuidado que o residente temia ser inútil (d de Cohen: 0,38);
  • 4º caso: já existir um processo de revisão de erros no próprio hospital (d de Cohen: 0,65).

Enquanto não houve diferença significativa no 5º caso (P valor de 0,59) e 6º caso (P valor de 0,57) respectivamente nos quais o residente já tinha frequentado serviço que tratava pacientes com anorexia durante a Residência e o médico supervisor ofereceu material educativo sobre a importância da vitamina K profilática para o residente fornecer para os responsáveis.

Discussão e conclusão

Layman e colaboradores sugerem que as intervenções bem-sucedidas tinham em comum: fornecer ao residente tanto empatia quanto perspectiva ou responsabilidade compartilhada, em parceria com um supervisor, ou responsabilidade compartilhada com aspecto estrutural do programa. Mencionam também que pesquisas sobre liderança mostram que bons líderes atenuam o sofrimento identificando situações que podem causar sentimentos negativos e compartilhando responsabilidades e até culpa. Em contrapartida, as intervenções mal sucedidas forneceram informações sem empatia ou parceria. Outro ponto levantado foi que a presença da cultura de avaliação de erros na instituição de saúde de forma sistemática com caráter educativo e não punitivo ajuda a nortear quais são situações que podem causar sentimentos negativos.

Escolher fazer Residência Médica é uma escolha em busca do aperfeiçoamento profissional e de supervisão por bons líderes. Sabemos que a rotina nos hospitais pediátricos é pesada, os profissionais de saúde são sobrecarregados e os médicos geralmente trabalham muito, entretanto como médicos supervisores devemos dar o exemplo na beira do leito no tratamento dos pacientes e na abordagem das famílias, apoiar nossos residentes, tendo um olhar atento para suas dificuldades técnicas e para como estão lidando com essas decisões. É fundamental que mostremos para nossos residentes que mesmo guiados pelas evidências científicas atuais, não é fácil tomar muitas decisões uma vez que lidamos com as vidas dos nossos pacientes com possível impacto para seus familiares, mas o trabalho em equipe junto com o diálogo com a família nos fortalece.

Algo que precisa ser mais cultivado nos serviços de saúde é o cuidado com os profissionais de saúde, que têm grande risco de adoecer por serem cuidadores e muitas vezes não cuidarem de si mesmo adequadamente. Por isso também temos que estimular nossos residentes e colegas a cuidarem de sua saúde mental com horário de descanso, lazer, atividade física, cultivando suas relações pessoais e, sempre que necessário, buscar psicoterapia e acompanhamento psiquiátrico. Devemos lembrar que só conseguimos cuidar do outro se estivermos bem.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Layman AAK, Callahan KP, Pamela Nathanson, Lechtenberg L, Hill D, Feudtner C. Simple Interventions for Pediatric Residents’ Moral Distress: A Randomized, Controlled Experiment. Pediatrics June 2023; 151 (6): e2022060269. DOI: 10.1542/peds.2022-060269