Revisão narrativa sobre delirium em pacientes graves

Um artigo descreveu o estado atual de evidências que podem atenuar o curso do delirium em pacientes graves. Saiba mais.

Recentemente, o jornal Intensive Care Medicine divulgou o artigo Delirium in critical illness: clinical manifestations, outcomes, and management de Stollings et al., cujo objetivo foi descrever o estado atual das evidências para medidas diagnósticas, preventivas e terapêuticas que podem atenuar o curso do delirium em pacientes graves. Abaixo, sintetizamos os principais pontos abordados na publicação.

delirium

Definição

O delirium é uma manifestação clínica de disfunção cerebral aguda, sendo um marcador de disfunção cerebral aguda. Dessa forma, quanto mais tempo um paciente sofre de disfunção orgânica, maior é a chance de comprometimento prolongado e irreversível.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais Quinta Edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-5), o delirium é definido como um distúrbio na atenção (principal característica obrigatória) que se desenvolve em um curto período de tempo, associado a distúrbios adicionais na cognição que não são mais bem explicados por outro distúrbio neurocognitivo pré-existente estabelecido ou em evolução e que não ocorrem no contexto de um nível de excitação severamente reduzido, associado a evidências da história, exame físico ou achados laboratoriais que indicam que esse distúrbio é uma consequência fisiológica direta de outra condição médica, intoxicação por substância ou abstinência. 

Prevalência

Historicamente, a prevalência relatada de delirium em pacientes submetidos à ventilação mecânica (VM) é de 60 a 80%, sendo em torno de 20 a 50% dos pacientes de menor gravidade internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Com o aumento da utilização de ferramentas diagnósticas validadas em todo o mundo, usando traduções em mais de 30 idiomas e através de modificações do manejo de rotina em UTI para reduzir a cultura de sedação excessiva e imobilidade, esses números caíram cerca de 25% em muitas instituições. No entanto, em locais que não utilizam essas abordagens, a prevalência ainda pode ser bem elevada.

Quadro clínico

O delirium pode ser classificado, quanto aos subtipos motores em:

  • Hiperativo – pacientes agitados e inquietos;
  • Hipoativo – pacientes com apatia, letargia e diminuição da responsividade. Essa forma é mais difícil de ser detectada e com pior prognóstico, a menos que uma ferramenta de triagem validada seja usada (pois pode ser confundido com quadros de depressão;
  • Misto – os pacientes flutuam entre os estados de hiper/hipoatividade.

Diagnóstico

Para diagnosticar qualquer disfunção orgânica é necessário identificar o fato, o grau e as causas dessa disfunção. Portanto, o uso de ferramentas diagnósticas à beira-leito é crucial para o reconhecimento do delirium. Usando avaliação psicométrica rigorosa, as diretrizes de 2018 da Society of Critical Care Medicine (Pain, Agitation/Sedation, Delirium, Immobility, and Sleep Disruption in Adult Patients in the ICU [PADIS] Guidelines)  recomendam o monitoramento de rotina do delirium em pacientes adultos de UTI, usando o Método de Avaliação de Confusão para a UTI (Confusion Assessment Method for the ICU – CAM-ICU) ou o Intensive Care Delirium Screening Checklist (ICDSC).

O CAM-ICU fornece um resultado no momento da realização do teste. Deve ser aplicado pelo menos uma vez por plantão e, se possível, a cada vez que ocorrerem mudanças na consciência (por exemplo, antes e após a suspensão da sedação). A versão atualizada do CAM-ICU que foi publicada em 2014 também foi validada usando o DSM-5, através de uma avaliação neuropsicológica estrita e padronizada.

O ICDSC é adequado para pacientes não comunicativos e inclui dados obtidos durante os cuidados de rotina à beira do leito durante todo o turno de enfermagem. Tanto o CAM-ICU quanto o ICDSC podem reconhecer pacientes que têm delirium subsindrômico (isto é, têm algumas características anormais em sua avaliação de delirium, mas não atendem a todos os critérios para o diagnóstico de delirium). Ambas as ferramentas são amplamente utilizadas em todos os tipos de UTI em todo o mundo. Leia mais: https://www.icudelirium.org/medical-professionals/downloads/resource-language-translations  

O próximo passo é identificar a causa da disfunção cerebral. 

Escores de gravidade

Embora sejam usados principalmente para pesquisas em UTI, os escores de gravidade têm sido usados em ambientes clínicos e em pesquisas fora da terapia intensiva. Três ferramentas utilizadas para avaliar a gravidade do delirium são: Delirium Rating Scale (DRS), CAM-S e o CAM-ICU-7.

Modelos de predição

Três modelos de predição para delirium podem auxiliar na prevenção e/ou tratamento: o PRE-DELIRIC, o E-PREDELIRIC e o modelo de Lanzhou. O PRE-DELIRIC inclui 10 preditores (idade, pontuação no escore APACHE II, grupo de admissão [clínico, cirúrgico, trauma, neurológico], admissão de emergência, infecção, coma, sedação, uso de morfina, nível de ureia e acidose metabólica). O E-PRE -DELIRIC inclui 9 preditores (idade, histórico de comprometimento cognitivo, histórico de abuso de álcool, nitrogênio ureico sérico, grupo de admissão [clínico, cirúrgico, trauma, neurológico], admissão de emergência, pressão arterial média, uso de corticosteroides e insuficiência respiratória0. Por fim, o Modelo de Lanzhou inclui 11 preditores (idade, pontuação no escore APACHE II, VM, cirurgia de emergência, coma, politrauma, acidose metabólica, história de hipertensão, história prévia de delirium, história de demência e uso de dexmedetomidina).

Ressonância magnética (RNM) de crânio

Seu papel na avaliação e tratamento do delirium não é claro. Podem fornecer informações diagnósticas para problemas estruturais, como acidentes vasculares encefálicos (AVE) ou abcessos, além de fornecer informações sobre o prognóstico cognitivo de longo prazo. Ademais, a varredura aumenta a carga dos pacientes, usa muitos recursos e produz artefatos de movimento. No entanto, em caso de delirium persistente após manejo de todas as causas potenciais, a RNM pode ser indicada para investigar qualquer lesão cerebral que não possa ser vista com a tomografia computadorizada (TC) de crânio. Em contraste, a RNM é um excelente ferramenta para fins de pesquisa em delirium.

Complicações

Em pacientes hospitalizados, o delirium é um forte preditor independente de mortalidade, do aumento do tempo de internação hospitalar, de hospitalizações subsequentes, de comprometimento cognitivo em longo prazo e de maiores custos do atendimento. 

Prevenção e tratamento

Nenhum agente farmacológico pode, sozinho, prevenir ou tratar o delirium. Os antipsicóticos e outros medicamentos psicoativos não melhoram de forma confiável a função cerebral em pacientes graves com delirium. As diretrizes do PADIS sugerem não usar haloperidol, antipsicóticos atípicos, dexmedetomidina, estatinas ou cetamina para prevenir o delirium em adultos graves. Além disso, nenhum ensaio clínico mostrou que o uso de quaisquer agentes farmacológicos pode tratar o delirium em UTI. Dessa forma, as diretrizes PADIS  são contra o uso de rotina de haloperidol, antipsicóticos atípicos ou estatinas para tratamento do delirium nesses pacientes. Com relação à dexmedetomidina, o PADIS recomenda uso em pacientes com delirium nos quais a agitação impede a extubação ou o desmame do ventilador.

Os antipsicóticos permanecem viáveis para o controle de curto prazo da agitação grave para evitar o risco de auto-remoção de dispositivos invasivos pelo paciente, queda ou comportamento agressivo contra a equipe de profissionais ou contra o acompanhante, ansiedade grave (para se evitar a depressão respiratória, como em pacientes com insuficiência cardíaca ou doença pulmonar obstrutiva crônica, por exemplo) ou sintomas, como alucinações ou delírios. Se um antipsicótico for iniciado, devem ser consideradas doses mais baixas de início, com revisão diária das interações medicamentosas, efeitos adversos, titulação da dosagem e necessidade do uso. 

O manejo inclui a adoção de medidas não farmacológicas, com a identificação e abordagem dos fatores de risco. O uso do mnemônico Dr. DRE pode auxiliar na triagem para todos os possíveis fatores predisponentes de delirium:

  • Dr Disease Remediation (remediação da doença);
  • DRDrug Removal (remoção de drogas);
  • EEnvironment (melhoria do meio ambiente).

Trate todos os potenciais fatores precipitantes relacionados ao delirium:

  • Hipoglicemia, hipotensão, hipoxemia/hipercarbia, sepse;
  • Correção de anormalidades hídricas e eletrolíticas;
  • Suspender ou modificar medicamentos psicoativos. Evitar o uso de benzodiazepínicos;
  • Monitorar a dosagem de β-lactâmicos;
  • Atenção a fecaloma e bexigoma – garantir evacuação e diurese regulares; 
  • Abordagem da dor;
  • Orientação do paciente no tempo, espaço e estado da doença;
  • Uso de aparelhos visuais e auditivos;
  • Redução de luzes e ruídos;
  • Promoção do sono;
  • Mobilize o paciente o mais rápido possível;
  • Garanta o apoio da família / amigos para o paciente, se possível.

É imprescindível dar tempo suficiente para a correção de alguns fatores, isto é, é preciso ser paciente. 

As evidências mais atualizadas defendem que a melhor abordagem para reduzir a carga desse problema não é um medicamento específico, mas sim um pacote de medidas não farmacológicas conhecido como ABCDEF Bundle, que se concentra no manejo das causas do delirium, reduzindo a sedação/ventilação/imobilidade, incorporando a família e reumanizando os cuidados intensivos, que se perdeu em muitas situações durante a pandemia de Covid-19.

Leia também: ‘Libertação da UTI’: o ABCDEF bundle e Estratégias para otimizar a aplicação do ABCDEF bundle em adultos com Covid-19

Recentemente, foi sugerida da inclusão do componente “R” para sublinhar o papel de um melhor manejo do drive respiratório e configuração do ventilador em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) e em todos os pacientes em VM.

Saiba mais: Estratégias para otimizar a aplicação do ABCDEF bundle em adultos com Covid-19

Direções futuras

As lacunas de conhecimento existentes e a agenda de pesquisa para os próximos 10 anos incluem a avaliação de ferramentas de diagnóstico, como EEG, estudos do líquido cefalorraquidiano (LCR), estudos de imagem (RNM) e a utilização de modelos de previsão em diversas populações. Além disso, há necessidade de pesquisas para se avaliar os efeitos dos antipsicóticos em sintomas como alucinações e delírios. Por fim, estudos grandes e randomizados precisam ser conduzidos para avaliar a estratégia não farmacológica de prevenção e tratamento do delirium e sua carga, englobando desfechos clinicamente significativos e de longo prazo.

Referências bibliográficas:

  • Stollings JL, Kotfis K, Chanques G, Pun BT, Pandharipande PP, Ely EW. Delirium in critical illness: clinical manifestations, outcomes, and management [published online ahead of print, 2021 Aug 16]. Intensive Care Med. 2021;1-15. doi: 10.1007/s00134-021-06503-1

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