Semiologia no paciente com deficiência física

A semiologia é o primeiro contato do estudante em formação com o atendimento aos pacientes, incluindo aqueles com deficiência física. Leia mais:

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A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13146/2015) foi promulgada com o intuito de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência física, visando sua inclusão social e cidadania. Na escola médica, é importante a adaptação do currículo para atender as necessidades deste grupo populacional. A semiologia é o primeiro contato do estudante em formação com o atendimento aos pacientes, incluindo aqueles com deficiência, e pode servir como etapa importante na capacitação do profissional médico para atendê-los. Neste artigo, foram revistas as principais etapas do exame semiológico que devem ser adaptadas ao paciente com deficiência física, conforme definição do Decreto 3298/1999.

A legislação brasileira define a deficiência física como uma alteração que pode ocorrer de maneira completa ou parcial em um ou mais segmentos do corpo humano, levando a um comprometimento da função física¹. De acordo com informações do censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,3% da população brasileira tinha algum tipo de deficiência física – o que correspondia na época a cerca de 2.480.000 pessoas. Quase metade desse total (46,8%) tem limitações em grau intenso ou muito intenso e somente 18% dessa população frequenta algum serviço de reabilitação2,3.

Dentre as causas para um expressivo número de pessoas com deficiência, destacam-se a violência presente nos centros urbanos e rurais, os acidentes de trânsito, bem como o processo natural de envelhecimento da população, com várias deficiências decorrentes de acometimento crônico, como o diabetes melito e as doenças osteo-articulares4. Por outro lado, a deficiência física, assim como os demais tipos de deficiência, é caracterizada por estigma e preconceito, inclusive por parte de alguns profissionais de saúde, sendo os pacientes com deficiência submetidos a uma importante privação da participação na sociedade em diversos campos4.

Nesse sentido, a Lei 13.146/15 foi promulgada com o intuito de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando sua inclusão social e cidadania6.

Apesar de avanços dessa natureza, a inclusão e o tratamento com equidade de pacientes com deficiência física ainda consiste em um grande desafio. No serviço de saúde, os obstáculos enfrentados atualmente por esses indivíduos não se limitam à histórica defasagem estrutural do SUS. Na escola médica, é importante a adaptação do currículo para atender as necessidades da pessoa com deficiência. A semiologia é o primeiro contato do estudante em formação com o atendimento aos pacientes, incluindo aqueles com deficiência, e pode servir como etapa importante na capacitação do profissional médico para atendê-los.

O objetivo desse trabalho é destacar aspectos no ensino da semiologia importantes no atendimento à pessoa com deficiência. Para este trabalho, o foco serão as pessoas com deficiência física conforme Decreto 3298/1999

Tabela 1. Tipos de deficiência física conforme Decreto 3298/1999.

Tipo Definição
Paraplegia Perda total das funções motoras dos membros inferiores
Paraparesia Perda parcial das funções motoras dos membros inferiores
Monoplegia Perda total das funções motoras de um membro
Monoparesia Perda parcial das funções motoras de um membro
Tetraplegia Perda total das funções motoras dos quatro membros
Tetraparesia Perda parcial das funções motoras dos quatro membros
Triplegia Perda total das funções motoras de três membro
Triparesia Perda parcial das funções motoras de três membro
Hemiplegia Perda total das funções motoras do membro superior e inferior do mesmo lado
Hemiparesia Perda parcial das funções motoras do membro superior e inferior do mesmo lado
Amputação Perda total ou parcial de um determinado membro ou segmento de membro
Paralisia Cerebral Lesão de uma ou mais áreas do sistema nervoso central, tendo como consequência alterações psicomotoras, podendo ou não causar deficiência mental
Ostomia Intervenção cirúrgica que cria um ostoma (abertura, ostio)

Tabela 2. Principais aspectos semiológicos no paciente com deficiência.

Região Manobra ou adaptação
Anamnese Coletar com o próprio paciente, e não o seu acompanhante.
Sinais vitais Pesquisa hipotensão postural.

Amplitude e simetria dos pulsos mesmo nos cotos em membros amputados.

Ectoscopia Anemia de doença crônica.

Avaliação do dorso e dos cotos devido as úlceras de pressão.

Respiratório Atelectasia e derrame em pacientes em decúbito.

Presença roncos e aspecto da secreção em pacientes com traqueostomia.

Cardiovascular Adaptação das manobras posturais na ausculta.
Abdômen Distensão abdominal pode ser sinal de patologia intra-abdominal em pacientes com sensibilidade prejudicada.

Avaliar presença de bexigoma e/ou fecaloma.

Membros Pulsos e úlceras em coto.

Dor do membro fantasma.

Sinais de trombose venosa profunda (edema assimétrico e empastamento de panturrilha).

deficiência física

Anamnese

A estrutura e os elementos fundamentais da anamnese e do exame são os mesmos para qualquer pessoa com deficiência. Entretanto, algumas manobras podem ser, se necessário, adequadas às limitações físicas que porventura possam estar presentes. Todo exame deve ser explicado para o paciente antes de sua realização e as eventuais dúvidas devem ser adequadamente esclarecidas. Em particular, durante uma anamnese, um pré-julgamento de uma pessoa com deficiência pode conduzir a graves equívocos, como não valorização dos sintomas, um exame físico incompleto e a perda da empatia na relação médico-paciente.

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Um aspecto muito importante é que a anamnese deve ser direcionada e coletada diretamente com o paciente com deficiência – e não o seu acompanhante. Caso o paciente utilize cadeira de rodas, o ideal é que o médico esteja sentado, para que se olhem na mesma altura. A coleta de informações com o acompanhante deve ocorrer apenas quando houver impossibilidade de expressão do paciente. Mesmo assim, primeiro deve ser tentada a coleta diretamente com o paciente e, no insucesso, explicado a ele que as demais informações serão perguntadas ao seu acompanhante.

Sinais Vitais

Os sinais vitais do paciente são a pressão arterial (PA), frequência cardíaca e respiratória, bem como temperatura. Obviamente, no paciente com amputação de algum membro, não será possível a medida da PA nesse local. Deve-se, então, medi-la normalmente nos membros presentes. No raro caso de um paciente não apresentar nenhum dos quatro membros, o exame da pressão arterial pelo método convencional com o uso de manguitos ficará inviabilizado. Métodos invasivos podem ser pensados, como o uso de cateteres de pressão central, contudo será válido apenas em situações extremas e em ambiente de internação.

Com relação ao pulso arterial, é importante não negligenciar os pulsos mesmo em um coto amputado, pois a doença isquêmica arterial pode favorecer ulcerações neste local. Em relação à temperatura, a boca e o ânus são alternativas à tradicional medida axilar, ainda que existam diferenças sutis nos valores desses sítios. A frequência respiratória normalmente é medida pela visualização do movimento da caixa torácica e raramente é afetada pela presença de deficiência física. Para adaptar o exame, pode-se encostar a mão no tórax do paciente (e sentir a movimentação da caixa torácica) ou até mesmo utilizar a ausculta pulmonar para estimar a frequência respiratória.

Ectoscopia

Na ectoscopia, obtém-se uma visão global do estado do paciente. Em uma pessoa com deficiência, esta é uma etapa fundamental para avaliar a presença de úlceras de pressão (escaras), cicatrizes de procedimentos anteriores, sinais indicativos de desidratação e deficiência vitamínica (padrão das unhas, turgor de pele, etc). É imprescindível procurar possíveis sinais indicativos de maus tratos, tais como hematomas e cicatrizes.

Adicionalmente, na ectoscopia é possível identificar qual é a deficiência do paciente, para que se possa planejar a adaptação do exame físico subsequente. É importante lembrar que o fato do paciente não conseguir se movimentar não é motivo para uma ectoscopia incompleta. Caso o paciente não seja capaz de trocar de decúbito ou de sentar, o médico deve auxiliar, com apoio da equipe de enfermagem, para que seu dorso e região perineal sejam examinados.

É preciso que o médico e a equipe saibam como fazê-lo, e sempre perguntar ao paciente qual a forma mais confortável de fazê-lo, percebendo que cada pessoa é diferente, embora possa apresentar o mesmo tipo de lesão ou condição. Por fim, devemos lembrar de estimar o peso do paciente, havendo balanças especiais para pacientes que não possam ficar de pé. Estas balanças são comuns em hospitais de alta complexidade, mas raramente disponíveis nos ambulatórios e consultórios.

Aparelho Respiratório

Uma atenção especial nos pacientes com decúbito prolongado, como aqueles com lesão medular alta, é a avaliação do aparelho respiratório, pois podem haver evidências clínicas de atelectasia e/ou derrame pleural. Em ambos, há redução do murmúrio vesicular com macicez à percussão. Contudo, no derrame há desvio do mediastino (traqueia) para o lado contralateral, bem como presença de egofonia (voz caprina à ausculta) na borda superior, o que não ocorre na atelectasia.

É fundamental também a análise do padrão ventilatório, pois pacientes com lesão na medula cervical podem apresentar comprometimento importante da respiração. O nervo frênico tem origem entre C3 e C5 e com frequência estes pacientes fazem uso da musculatura abdominal como apoio. Além disso, a maioria dos pacientes com lesão na medula cervical provavelmente estará traqueostomizada (TQT), o que trará peculiaridade na ausculta respiratório. Em pacientes com TQT, é comum encontrarmos roncos devido ao acúmulo de secreção. Da mesma forma, a análise da quantidade e aspecto da secreção se tornam importantes na avaliação médica.

Aparelho Cardiovascular

Na história, é importante frisar que o paciente com lesão medular alta pode não apresentar angina clássica, e os sinais de doença coronariana podem ser atípicos, como dispneia e sudorese profusa – os chamados equivalentes anginosos. No exame físico, o paciente com deficiência pode necessitar de auxílio para manobras posicionais, como avaliação adequada dos pulsos vasculares na região cervical e a ausculta cardíaca.

Algumas manobras que necessitam da posição ortostática podem não ser possíveis no paciente que não consegue ficar de pé, como, por exemplo, a manobra de acocoramento para identificação do sopro da miocardiopatia hipertrófica. Por fim, um aspecto muito importante é avaliar a presença de hipotensão postural, presente em pacientes com disautonomia. A maior parte dos pesquisadores recomenda a medida da PA após 3 minutos em ortostase.

Abdômen

Para que o exame do abdômen do paciente com deficiência seja feito com qualidade, é fundamental que se esclareça com precisão se há comprometimento neurológico. Isso porque uma lesão medular pode comprometer a avaliação de dor (seja hiper- ou hipoestesa) e sinais de irritação peritoneal. Essa dificuldade pode ser percebida também em pacientes vítimas de acidente cerebral vascular, com sequelas de alteração de sensibilidade. Nesse grupo de pacientes, a alternativa é valorizar a presença de sintomas constitucionais gerais, como febre, calafrio, astenia, taquicardia, taquipneia, sudorese, inapetência e desconforto.

A presença do Sinal de Lenander (temperatura retal superando a axilar em 1°C) é um método pouco utilizado atualmente, mas que pode ser uma ferramenta útil ao diagnóstico de peritonite nesse grupo de pacientes. A dor referida também pode ser utilizada, como, por exemplo, epigastralgia e dor periumbilical na apendicite (T6 – T10) e a dor no ombro em indivíduos com irritação do nervo frênico por infecções no andar superior do abdome (C4). Por fim, a distensão abdominal pode ser um marco de patologia intra-abdominal nos pacientes que têm a sensibilidade prejudicada, e deve ser valorizada.

O controle esfincteriano dos indivíduos com deficiência pode estar comprometido, especialmente em pacientes com lesão raquimedular e do sistema nervoso central. Por isso, o examinador deve estar atento à presença de retenção urinária, cuja sinal clínico consiste na distensão da bexiga, palpável como uma massa em região hipogástrica (bexigoma). Da mesma forma, em pacientes constipados deve ser avaliada a presença de fecaloma palpável, em especial na região do sigmoide (fossa ilíaca esquerda).

Caso o paciente disponha de controle esfincteriano, é adequado que se questione sobre a necessidade de urinar anteriormente ao exame, pois a palpação do abdômen pode produzir desconforto ou até mesmo promover incontinência urinária. Um outro aspecto importante é o risco de infecções urinárias com sintomas atípicos e sem queixas típicas, como disúria.

Outros aspectos do exame físico

No exame dos membros inferiores deve-se avaliar a presença de edema, úlceras, sinais de trombose venosa profunda e o estado dos pulsos pediosos e poplíteos. Em uma pessoa com deficiência deve-se considerar a presença de possível redução da sensibilidade, e, portanto, lesões que podem passar despercebidas pelo paciente. É importante também avaliar o estado do coto da amputação, devendo-se procurar sinais de flogose ou infecção.

No exame neurológico, é importante avaliar a presença de disautonomias, o estado da função esfincteriana e a sensibilidade, assim como as funções motoras e os reflexos. A avaliação da função cognitiva pode ser bastante útil para a detecção precoce de doenças degenerativas. A avaliação da marcha está prejudicada em pacientes com plegias e amputações dos membros inferiores.

Para aqueles que estejam habilitados a caminhar, como os pacientes com monoplegia/monoparesia ou hemiplegia/hemiparesia, é importante auxiliar sua marcha, para evitar desestabilizações e possíveis quedas. Nos pacientes plégicos, ainda que não haja a movimentação ativa, a movimentação passiva poderá ser efetuada para avaliação do tônus e da amplitude dos movimentos.

Conclusão

A semiologia do paciente com deficiência apresenta aspectos peculiares que devem ser observados para um melhor atendimento médico. Contudo, nem sempre há uma aula específica para esse tema nos cursos de graduação. Com o crescimento da população com deficiência, por diversos motivos, é importante a introdução desse tema na grade de ensino médico.

*Coautoria:

Luís Otávio Mocarzel

Erito Marques de Souza Filho

Nicholas Cafieiro Peixoto

Ana Carolina Teixeira Pires

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Referências:

  1. Presidência da República. Decreto 3298 [internet]. Brasília; 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm
  2. Villela F. IBGE: 6,2% da população têm algum tipo de deficiência”. Rio de Janeiro: Empresa Brasileira de Comunicações (EBC), 2015 [acessado em 01/07/2016]. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-08/ibge-62-da-populacao-tem-algum-tipo-de-deficiencia
  3. Censo demográfico 2010. Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010 [acessado em 03/07/2016]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/
  4. COSTA, LCM. Inclusão no curso médico: atenção integral à saúde das pessoas com deficiência. 1ª Ed. Rio de Janeiro, HP Comunicação Editora, 2015.
  5. Human rights of persons with disabilities. Nova Iorque: Organização das Nações Unidas (ONU) [acessado em 03/07/2016]. Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/Issues/Disability/Pages/DisabilityIndex.aspx
  6. Presidência da República. Lei 13146 [internet]. Brasília; 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
  7. Fernandes AC, Ramos, ACR, Morais Filho, MC, Jesus, M. Reabilitação. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Manole Editora, 2014.

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