A vacinação contra o SARS-CoV-2 e o mito da infertilidade

Mediante diversas incertezas, surgiram questões sobre o possível efeito das vacinas contra o SARS-CoV-2 sobre a infertilidade humana.

Com o avanço e a continuidade da pandemia de Covid-19, associada ao coronavírus SARS-CoV-2, diversos estudos foram descrevendo progressivamente às variações das manifestações clínicas possíveis decorrentes da infecção. As hipóteses de transmissão sexual de SARS-CoV-2, a possível alteração da fertilidade masculina e feminina, os efeitos sobre a gestação ou o potencial teratogênico tiveram amplo impacto sobre a medicina reprodutiva. Mediante essas diversas incertezas, surgiram posteriormente e mais recentemente outras questões e suposições sobre o possível efeito negativo das vacinas anti-Covid sobre a fertilidade humana, o que têm implicado em menor adesão às estratégias vacinais por parte da população. Mas afinal, as estratégias vacinais anti-SARS-CoV-2 causam infertilidade ou estamos diante de mais uma fake news?

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A fisiopatologia da infecção pelo betacoronavírus 2B SARS-CoV-2 envolve o papel fundamental dos receptores da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) e da serina protease transmembrana tipo 2 (TMPRSS2) presentes na superfície das células hospedeiras. Esses receptores são responsáveis pela ligação com a espícula glicoproteica de SARS-CoV-2, em sua porção S1, para proporcionar a ligação e adesão à membrana célula, e sua porção S2, para a fusão viral com a membrana e liberação do genoma viral no citoplasma e consequente progressão da infecção. Os receptores ACE2 estão presentes principalmente no tecido pulmonar, porém já se conhece também a presença de receptores para SARS-CoV-2 em órgãos/tecidos do sistema reprodutor humano em regiões específicas como descrito na Tabela 1 (Chandi &, Jain, 2021).

A vacinação contra a Covid-19 e o mito da infertilidade

Tabela 1 – Presença de receptores para SARS-CoV-2 em órgãos/tecidos do sistema de reprodução humana. 

ACE2 TMPRSS2/4 BSG
Próstata
  • Epitélio luminal
++
  • Células Hillock
+/- +
  • Células club
+/- +
  • Células da lâmina basal
Tubulos seminíferos dos testículos
  • Espermátides
+/- +
  • Espermatogônia secundária
+/- +/- +++
  • Espermatogônia primária
+/- +/- ++
  • Células tronco da espermatogonia
+ + +++
Ovários
  • Células da granulosa
+/- +
  • Células da teca
  • Células cumulus
+ +/- +
Endométrio
  • Fase proliferativa precoce
+/- ++ +++
  • Fase secretória
+ ++ +++
Formação e desenvolvimento do zigoto
  • Oócito
  • Zigoto
+ +
  • Estágio celular 2
+/- +/-
  • Estágio celular 4
+/- ++
  • Estágio celular 6
+/- ++
  • Estágio celular 8
+/- ++
  • Mórula
++
  • Blastocisto tardio
+ + +++

No sexo masculino, já foi descrita a expressão de receptores ACE2 e TMPRSS2 nos testículos expressos em células de Leydig, células tronco das espermatogônias e outros tipos celulares. Alguns pacientes com infecção aguda por SARS-CoV-2 já descreveram desconforto em saco escrotal, e achado incidental de epididimite, orquite ou orquiepididimite ao exame ultrassonográfico em taxas de até 22,5%. Esses aspectos levam alguns pesquisadores a sugerirem espermatogênese anormal em homens com Covid-19 moderada a grave, com prejuízo na qualidade do espermatozoide (concentração alterada, número de espermatozoide por ejaculação, mobilidade progressiva e completa). Observou-se também alteração hormonal da ratio Testosterona/LH e do FSH/LH. Adicionalmente, poucos estudos conseguiram detectar SARS-CoV-2 em amostras de sêmen, em taxas em torno de 15,8%, mas não foi possível comprovar a transmissão sexual (Chandi &, Jain, 2021). 

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Comparativamente verifica-se a expressão de receptores ACE2 e TMPRSS2 em menor quantidade no sistema reprodutor feminino, e a ocorrência depende de gonadotropina. Observa-se a expressão desses receptores de forma mais restrita em células germinativas e em tecidos específicos, mais especificamente ACE2 (100% das células) em maior quantidade do que TMPRSS2 (37% das células). Especificamente o receptor Basigin (BSG), uma alternativa aos receptores ACE2 e TMPRSS2, é expresso em células somáticas ovarianas. O grau de coexpressão desses receptores é alterado de acordo com a maturidade dos oócitos. A presença/ausência dessas estruturas em diferentes tecidos e células são descritos na Tabela 1. Apesar desses achados, não há evidências que indiquem a presença de SARS-CoV-2 nos ovários humanos, ou que indiquem diferença na qualidade do fluido folicular entre mulheres sem doença, em recuperação de Covid-19 ou após vacinação com a estratégia Pfizer. Adicionalmente, anticorpos IgG anti-Covid foram detectados nesses espécimes tanto em quadros pós infecção por SARS-CoV-2 ou vacinação.

Por outro lado, um dos estudos citados verificou menores taxas de FSH, testosterona, e níveis de prolactina em pacientes que tiveram Covid-19, assim como irregularidade menstrual e dismenorreia em 15% e 32% respectivamente, mas não foi comprovado por outros estudos posteriores semelhantes. Há sugestão de que ocorra redução da reserva ovariana em mulheres com infecção por SARS-CoV-2 mas não há comprovação ou evidências de que altere a fertilidade feminina. Ainda há carência de estudos, com maior número de pacientes e análises específicas, relacionados a esses aspectos. O endométrio, devido a ampla expressão de receptores para SARS-CoV-2, poderia ser um sítio propenso a infecção viral, porém também há carência de estudos de detecção direta das partículas em estudos histopatológicos. 

Apesar de alguns estudos indicarem transmissão vertical de SARS-CoV-2, especialmente no primeiro trimestre, com incidência variável de 4 a 11%, e também a placenta como reservatório viral (12% dos casos), a probabilidade de detecção e multiplicação do coronavírus em líquido amniótico, cordão umbilical, flúido vaginal e leite materno têm sido descrita como mínima. Além dessas considerações, a detecção de IgM e IgG anti-SARS-CoV-2 maternos nesses espécimes e em neonatos têm sido amplamente descrita, especialmente por dano em placenta durante a Covid-19 (Chandi &, Jain, 2021). 

A vacinação anti-Covid-19 e a fertilidade

Ainda em fevereiro de 2021, Iacobucci (2021) destacou enfaticamente, no jornal científico BMJ, a declaração da Association of Reproductive and Clinical Scientists and the British Fertility Society de que não há nenhuma evidência científica que indique que a vacinação anti-Covid-19 poderia ter risco para a fertilidade masculina ou feminina. Tais justificativas foram publicadas no consenso da instituição e indicaram claramente que tais sugestões consistiam em divulgação de informação não científica que tenderiam a prejudicar os programas de vacinação nos diversos países. Considerando as estratégias vacinais adotadas anti-Covid-19, não há mecanismos que sustentem qualquer efeito prejudicial da vacinação para a fertilidade humana, especialmente porque nenhuma delas apresentam o vírus SARS-CoV-2 completo em sua constituição de forma viável ou reprodutível, e sim partículas inativadas ou fragmentos estruturais.  

Recentemente, em maio de 2021, Bowman et al. (2021) realizaram  estudos em modelo animal com ratos inoculados com a vacina BNT162b2, desenvolvida pela empresa Pfizer-BioNTech e constituída de nanopartículas lipídicas compostas por mRNA com fragmento de material genético de SARS-CoV-2 codificante para a espícula viral. Os autores avaliaram os efeitos na fertilidade, na fase pré-natal e pós-natal. Verificou-se uma resposta robusta quanto à produção de anticorpos neutralizantes durante todo o período pós-vacinação e lactação tanto nos animais gestantes quanto nos fetos. Observou-se também ausência de efeitos adversos, assim como nenhuma alteração na performance de copulação, fertilidade, parâmetros ovarianos ou uterinos, na sobrevivência fetal ou pós-natal, crescimento e desenvolvimento dos neonatos até o final do período de lactação.  

Portanto, considerando os estudos descritos até o momento e a ausência de evidências ou mecanismos biológicos plausíveis que sugiram o contrário, NÃO há efeitos diretos ou indiretos da vacinação anti-Covid-19 sobre a fertilidade humana. 

Os detalhes adicionais sobre esses aspectos podem ser verificados nas referências citadas abaixo. 

Referências bibliográficas:

  • Chandi A, Jain N. State of assisted reproduction technology in the coronavirus disease 2019 era and consequences on human reproductive system. Biology of Reproduction. 2021; ioab122. doi: 10.1093/biolre/ioab122
  • Anifandis G, Tempest HG, Oliva R, Swanson GM, Simopoulou M, Easley CA, Primig M, Messini CI, Turek PJ, Sutovsky P, Ory SJ, Krawetz SA. COVID-19 and human reproduction: A pandemic that packs a serious punch. Syst Biol Reprod Med. 2021 Feb;67(1):3-23. doi10.1080/19396368.2020.1855271
  • Association of Reproductive and Clinical Scientists, British Fertility Society. Covid-19 vaccines and fertility. 2021. Dsponível em: www.britishfertilitysociety.org.uk/wpcontent/uploads/2021/02/Covid19-Vaccines-FAQ-1_3.pdf
  • Bowman CJ, Bouressam M, Campion SN, Cappon GD, Catlin NR, Cutler MW, Diekmann J, Rohde CM, Sellers RS, Lindemann C. Lack of effects on female fertility and prenatal and postnatal offspring development in rats with BNT162b2, a mRNA-based COVID-19 vaccine. Reprod Toxicol. 2021 Aug;103:28-35. doi10.1016/j.reprotox.2021.05.007
  • Iacobucci G. Covid-19: No evidence that vaccines can affect fertility, says new guidance. BMJ. 2021 Feb 19;372:n509. doi: 10.1136/bmj.n509 

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