Abordagem intensiva das doenças relacionadas ao calor

As doenças e lesões graves relacionadas ao calor (DLRC) tendem a se tornar mais frequentes com o aquecimento global.

Os eventos climáticos extremos, como as ondas de calor, têm se tornado cada vez mais frequentes, constituindo-se em perigos naturais potencialmente fatais. As doenças e lesões graves relacionadas ao calor (DLRC) por vezes motivam a admissão em centros de terapia intensiva (CTIs), quando a mortalidade pode atingir os 60%.   

A fisiopatologia da DLRC é pautada no ganho excessivo de calor que suplanta os mecanismos de termorregulação. Gera-se, portanto, dano celular direto, com ênfase no citoesqueleto, DNA, proteínas e organelas, cujo resultado final é necrose e apoptose celular. Na sequência, instala-se resposta inflamatória sistêmica, com distúrbios de coagulação, colapso hemodinâmico e disfunção multiorgânica.   

Veja também: Perigo do verão: arboviroses

calor

Populações vulneráveis às doenças relacionadas ao calor

As populações mais vulneráveis incluem os idosos, atletas, trabalhadores ao ar livre e crianças. Na população pediátrica, o esquecimento de crianças em carros estacionados é uma causa devastadora e prevenível de morte relacionada ao calor.    

A apresentação clínica pode incluir fadiga, câimbras, exantema e síncope, com destaque para a insolação, que é subdividida em duas categorias:  

Insolação clássica  Insolação relacionada ao exercício 
  • Combinação entre a exposição a elevadas temperaturas ambientes e prejuízo na capacidade de dissipação do calor.  
  • Mais comum entre idosos policomórbidos e com redução da sensação de sede. 
  • Agravada pela utilização de alguns fármacos, como diuréticos, laxativos, betabloqueadores, anticolinérgicos e antipsicóticos. 
  • Relaciona-se ao aumento excessivo da produção de calor corporal. 
  • Mais comum entre jovens, atletas, profissionais da construção civil, militares e bombeiros.  
  • Há rápido aumento da temperatura corporal em um curto período de tempo, e não necessariamente está associada às ondas de calor. 

A definição da insolação clássica baseia-se em alterações do estado mental (confusão mental, delirium, convulsões e coma) em pacientes com pele quente, seca e com temperatura corporal superior a 40°C. Na insolação relacionada ao exercício, disfunções neurológicas podem ser evidenciadas, como irritabilidade, náuseas, vômitos, fraqueza muscular, tonteira, ataxia e convulsões; e espera-se sudorese profusa, com pele úmida.  A lesão cerebral tipicamente se concentra no cerebelo.  

O tratamento é pautado nos métodos precoces de resfriamento externo por condução (“resfrie primeiro, transporte depois”), incluindo a transferência para ambiente fresco e com sombra. O alvo é de temperatura corporal central entre 38° e 40°C em um período de 30 minutos, primando-se pela queda maior ou igual a 0,155°C/minuto, que se relaciona à sobrevida de 100% entre pacientes com insolação induzida pelo exercício.

Em contrapartida, o resfriamento insatisfatório aumenta as complicações médicas em até 5 vezes. A inacurácia das técnicas de aferição periférica da temperatura, especialmente durante o processo de resfriamento, torna válido o esforço pela monitorização da temperatura corporal central por meio de sensores intravasculares, esofágicos, vesicais ou retais.  

Os eventos organizados de atletismo tipicamente dispõem de estações de resfriamento, incluindo mantas térmicas frias e equipamentos de imersão em água gelada, com alta eficácia. Opções mais práticas e disponíveis incluem as bolsas corporais de água gelada ou gelo acopladas em regiões bem vascularizadas (linha axilar anterior, região inguinal e pescoço) e a borrifação de água fria concomitante à exposição aos ventiladores para facilitar a evaporação. 

A utilização rotineira e isolada de irrigação de água gelada por cateteres nasogástricos ou vesicais não é recomendada, pois apresenta potencial mínimo de redução da temperatura corporal total e gera um consumo importante do tempo das equipes assistenciais. Métodos invasivos como cateteres de arrefecimento intravasculares e circulação extracorpórea têm sido descritos com sucesso em casos refratários.    

A hipovolemia, desidratação e perda de eletrólitos estão associadas à insolação e somam-se à redistribuição de fluxo por vasodilatação periférica, reduzindo a pré-carga. Dessa forma, a ressuscitação volêmica está indicada, sendo o soro fisiológico a droga de escolha, contrabalanceando as perdas de sódio e cloro pelo suor. O volume deve ser direcionado por metas hemodinâmicas, geralmente valendo-se da infusão de 1L de solução, com protocolos mais agressivos destinados ao tratamento da rabdomiólise, em que o alvo de diurese é de 1 a 3 mL/kg/h.   

As soluções salinas frias (4°C) têm sido descritas em cenários de parada cardiorrespiratória relacionada à insolação, mas podem ser consideradas como adjuvantes, especialmente nos casos refratários.   

O papel da terapia farmacológica é mínimo. O dantrolene, utilizado na hipertermia maligna, foi especulado nas doenças relacionadas ao calor, pelo compartilhamento de processos fisiopatológicos, mas os estudos se limitam à esfera básica com modelos animais. Os antipiréticos, úteis no manejo da febre, são ineficazes na insolação, e podem agregar riscos inerentes aos anti-inflamatórios, como coagulopatia, disfunção renal e lesão hepática.   

O prognóstico é estritamente relacionado ao pico de temperatura corporal, sendo pior quando ultrapassa 41,6°C e esperando-se um incremento de mortalidade de 3% a cada elevação em 1°C na média diária de temperatura. Outros marcadores de mau prognóstico incluem a persistência de disfunções orgânicas por mais de 96 horas, idade avançada e duração prolongada da hipertermia.

Um escore prognóstico validado é o J-ERATO, constituído por 6 variáveis: idade ≥ 65 anos, frequência respiratória ≥ 22 IRPM, Escala de coma de Glasgow < 15 pontos, pressão arterial sistólica ≤ 100 mmHg e temperatura ≥ 38°C; e uma boa performance foi demonstrada com o emprego do escore SOFA. Entre os sobreviventes, a presença de limitações funcionais graves pode alcançar os 40%, incluindo aspectos motores e cognitivos.   

Por conta da tendência de aumento progressivo dessas condições, os profissionais dedicados à medicina pré-hospitalar, de urgência e emergência e intensiva devem estar atentos ao seu adequado manejo. As recomendações destinadas aos leigos devem incluir a evitação de exposição ao calor extremo, adequada hidratação e busca por métodos ativos de resfriamento, como duchas ou banhos frios, bem como as orientações sobre o acionamento dos serviços de emergência nos casos indicados.   

Saiba mais: Verão: o que você precisa saber para proteger seu paciente

Conclusão e mensagens práticas  

  • As doenças e lesões graves relacionadas ao calor (DLRC) tendem a se tornar mais frequentes com o aquecimento global e o aumento das ondas de calor.  
  • Orientações destinadas ao público geral se fazem necessárias, evitando-se as exposições de risco e estimulando comportamentos protetores, especialmente entre as populações mais vulneráveis.  
  • A principal meta terapêutica é o resfriamento, com meta de alcançar a temperatura corporal central entre 38 e 40°C em no máximo 30 minutos.  
  • Os métodos ativos de resfriamento, por condução, em suas várias modalidades, são a primeira linha de tratamento.  
  • A expansão volêmica, preferencialmente com soro fisiológico, é útil para o manejo do choque hipovolêmico e distributivo, além de viabilizar a reposição de sódio e cloro pelo suor excessivo.  
  • O prognóstico dos doentes críticos acometidos por insolação é grave, com mortalidade alcançando os 60% e evoluindo com limitações funcionais significativas em até 40% dos casos.  

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Barletta JF, Palmieri TL, Toomey SA, Harrod CG, Murthy S, Bailey H. Management of Heat-Related Illness and Injury in the Intensive Care Unit: A Concise Definitive Review. Crit Care Med. 2024 Jan 19. DOI: 10.1097/CCM.0000000000006170. Epub ahead of print. PMID: 38240487.