Como a Covid-19 causa sintomas neuropsiquiátricos?

Segundo alguns trabalhos, a prevalência dos sintomas neuropsiquiátricos da Covid-19 pode atingir entre 20 e 70% dos pacientes infectados.

Ainda há muitas dúvidas sobre a fisiopatologia da Covid-19, embora muito também já tenha sido descoberto. Segundo alguns trabalhos, a prevalência dos sintomas neuropsiquiátricos da Covid-19 pode atingir entre 20 e 70% dos pacientes infectados, se manifestando antes, durante ou após a ocorrência de outros sintomas, por vezes permanecendo de forma duradoura. Justamente por essa relação temporal diversa, existe a suposição que os danos cerebrais ocorram de forma independente. Dentre as queixas mais comuns destacam-se: a anosmia, ansiedade, alterações cognitivas, déficit de atenção, depressão, sintomas psicóticos, ideação suicida e convulsão.

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Em março de 2021, foi publicado no JAMA Psychiatry um artigo cujo objetivo era fornecer um modelo que poderia explicar essa clínica. Eles o fizeram dividindo a explicação em 2 etapas: na primeira explicam como o vírus poderia chegar ao sistema nervoso e causar inflamação, trombos e lesão cerebral; no segundo, descrevem como o aumento da inflamação sistêmica atua sobre as células da glia, as monoaminas e os fatores tróficos (elevando o glutamato, a resposta aos receptores NMDA e a toxicidade) — o que seria responsável pela piora dos sintomas já existentes ou o surgimento de novos.

Como a Covid-19 causa sintomas neuropsiquiátricos

Caminho da infecção

Primeiro, acredita-se que o vírus infecta a mucosa nasal, onde irá gerar anosmia. Depois poderia chegar ao sistema nervoso central de algumas formas: migrando pelo trato olfatório ou através dos nervos vago ou trigêmio (apesar de serem especulações). O próximo passo é atravessar a barreira hematoencefálica, o que ocorreria através dos monócitos ou por aumento da permeabilidade vascular causada pela ação das citocinas inflamatórias. A partir daí, ele alcançaria uma estrutura chamada órgãos circunventriculares, ganhando o sistema nervoso. O acometimento dos órgãos circunventriculares e do tronco cerebral poderiam estar relacionados às queixas de ageusia, náusea e vômitos.

As alterações no tronco cerebral também poderiam justificar as perturbações autonômicas e os quadros ansiosos. Já outros sintomas poderiam ser explicados pela neuroinflamação e pelas lesões hipóxicas. Essas seriam secundárias à entrada do vírus no endotélio cerebral, que termina por desencadear a ativação dos macrófagos, neutrófilos, do sistema complemento e da trombina — o que favorece o surgimento de microtrombos, gerando hipóxia, isquemia e infartos. Essa ocorrência seria compatível com achados em necropsias.

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Além disso, parece que o sistema complemento poderia interferir no trabalho das células da glia sobre a poda sináptica após quadros de infecções virais. A combinação de lesão microvascular, perda neuronal e inflamação também poderia se relacionar à ideação suicida. Nas pesquisas histopatológicas foram encontrados: RNA viral no cerebelo e na medula (apesar disso não se confirmar por todas as técnicas de pesquisa); proteínas virais no endotélio cerebral (embora não se possa excluir alguma forma de contaminação); fagocitose de neurônios e alterações nas micróglias junto à esparsas infiltrações linfocíticas (mais no tronco cerebral do que no córtex e nas estruturas límbicas), embora não se tenha encontrado correlação com a quantidade de RNAm viral.

Agora os autores descrevem como a inflamação sistêmica também pode contribuir para os sintomas. Os pacientes com quadros graves apresentam a chamada “tempestade de citocinas”, que representa um aumento nas quantidades das citocinas inflamatórias no sangue (IL-1,6 e 10 e TNF-alfa). Uma dessas citocinas (TNF-alfa) poderia atravessar a barreira hematoencefálica (seja através dos órgãos circunventriculares ou pelo aumento da permeabilidade vascular causada pela inflamação), ativando as células da glia (astrócitos e micróglias) que, por sua vez, irão fagocitar as células danificadas ao mesmo tempo em que liberam mais mediadores inflamatórios (a saber: TNF-alfa, interleucinas, glutamato, proteínas do complemento e ácido quinolínico). Esses mediadores influenciam a si mesmos (o ácido quinolínico aumenta o glutamato e promove um upregulation dos receptores NMDA) podendo causar alterações na neuroplasticidade, na memória, no aprendizado, além de pesadelos e alucinações.

De outra forma, a inflamação também pode alterar o metabolismo do triptofano (o precursor do neurotransmissor serotonina), levando a diminuição da transmissão serotoninérgica. Ou seja, parece que a inflamação pode prejudicar o funcionamento das monoaminas no cérebro, podendo gerar sintomas de prejuízos cognitivos, anedonia, alterações psicomotoras e/ou neurovegetativas, depressão e ideação suicida. Infelizmente, nestes casos não se observa boa resposta com medicações antidepressivas.

Foi descoberto que pacientes com transtorno depressivo que tentaram suicídio apresentaram maiores quantidades dos mediadores inflamatórios no sangue, líquor e cérebro (quinoneurina, IL-1, IL-6 e proteína C reativa), havendo correlação com os níveis de glutamato cerebrais. Também existe a possibilidade de alguns marcadores se relacionarem a uma possível capacidade de predizer a ocorrência de sintomas depressivos ou negativos nos pacientes com risco para transtornos psicóticos (IL-6 e TNF-alfa); se relacionarem a um menor volume hipocampal (IL-6), apoptose nos corpos mamilares e redução da neurogênese no hipocampo (IL-1beta). Resumindo, a inflamação pode contribuir para a presença dos sintomas neuropsiquiátricos na medida em que é responsável pela redução dos neurotransmissores e das neurotrofinas, enquanto aumenta a toxicidade.

A apresentação dos sintomas pode variar conforme a região do cérebro mais afetada. Isto é, os sintomas neuropsiquiátricos correspondem às áreas cerebrais mais acometidas por esses processos.

Mensagem final

Este assunto é muito complexo, mas sua elucidação ajudaria a compreender as apresentações clínicas que podem se manifestar de forma prolongada, impactando na qualidade de vida dos pacientes. Também poderia ajudar a entender outros processos relacionados à neuroinflamação e a desenvolver estratégias de intervenção apropriadas. Sobre isso, os autores chegam a especular sobre possíveis intervenções, como medicações anti-inflamatórias ou antagonista de citocinas (p.ex. aspirina e infliximabe, respectivamente), dentre outras. Contudo, tratam-se de especulações, sendo necessários mais estudos.

Referências bibliográficas:

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