Hipercarbia leve ou normocapnia após parada cardiorrespiratória extra-hospitalar?

Estudo testou a hipótese de que a hipercarbia leve implicaria em melhora dos desfechos comparada à normocapnia pós parada cardiorrespiratória extra-hospitalar.

O manejo dos pacientes ressuscitados após parada cardiorrespiratória extra-hospitalar (PCR-EH) tem como propósito o incremento da sobrevida, preferencialmente acompanhada por desfechos neurológicos satisfatórios em médio e longo prazo, por vezes comprometidos pela encefalopatia hipóxico-isquêmica advinda da má perfusão cerebral.

As intervenções baseadas em alvos fisiológicos, como temperatura, oxigenação, pressão arterial e pressão parcial arterial de dióxido de carbono (paCO2), têm sido alvo de estudos em pacientes comatosos recuperados da PCR.

A paCO2 é uma potente reguladora do tônus vascular cerebral, sendo que para cada incremento em 1 mmHg na paCO2 há aumento do fluxo sanguíneo cerebral na ordem de 2 mL/100 g de tecido.

Leia também: Parada cardiorrespiratória: o que fazer? – Decisão Clínica PEBMED

Dessa forma, é plausível que manipulações da paCO2, objetivando aumento da perfusão cerebral, possam trazer mudanças de desfechos neurológicos. Em contrapartida, o aumento de fluxo sanguíneo pode impactar negativamente o edema cerebral, agravando potencial hipertensão intracraniana, que é, de toda forma, incomum nas primeiras 72 horas após a recuperação espontânea da circulação (REC).

Até o momento, estudos observacionais e fisiológicos demonstraram que a hipercapnia se associou a maior probabilidade de alta hospitalar, melhores desfechos neurológicos, aumento de saturação cerebral de oxigênio e atenuação da liberação de enolase neurônio-específica, um biomarcador de lesão cerebral.

O estudo TAME (Target Therapeutic Mild Hypercapnia after Resuscitated Cardiac Arrest), publicado no NEJM em junho de 2023, propôs-se a testar a hipótese de que a hipercarbia leve implicaria em melhora dos desfechos neurológicos e sobrevida em seis meses comparada à normocapnia em adultos comatosos submetidos à ressuscitação cardiopulmonar (RCP) de PCR-EH.

Hipercarbia leve ou normocapnia após parada cardiorrespiratória extra-hospitalar

Métodos

Trata-se de um estudo randomizado, aberto e internacional, com análise de intenção de tratamento, envolvendo adultos comatosos ≥ 18 anos na sequência de RCP destinada à parada cardiorrespiratória extra-hospitalar de etiologia cardíaca presumida ou de causa desconhecida, desde que apresentassem REC sustentada por ao menos 20 minutos.

Foram excluídos casos triados após 180 minutos da REC, PCR não assistida em assistolia, indivíduos em cuidados paliativos, hipotermia (< 30 °C) e hemorragia intracraniana.

A randomização foi realizada na razão de 1:1, sendo o grupo intervenção definido pelo alvo de hipercarbia leve, com paCO2 entre 50 e 55 mmHg; e o grupo controle pelo alvo de normocapnia, com paCO2 entre 35 e 45 mmHg.

Os médicos assistentes foram orientados a manter sedação profunda (RASS – 4), com coleta de gasometrias arteriais a cada 4 horas por 24 horas, almejando o alvo de paCO2 pré-estabelecido.

O desfecho primário foi o resultado neurológico favorável avaliado em 6 meses, definido como escore entre 5 a 8 na Escala Ampliada de Desfechos de Glasgow (GOS-E), descrita na sequência.

Escala Ampliada de Desfechos de Glasgow (GOS-E)
1 Morte  

 

Resultado neurológico desfavorável.

2 Estado vegetativo
3 Incapacidade grave (estrato inferior)
4 Incapacidade grave (estrato superior)
5 Incapacidade moderada (estrato inferior)  

 

 

Desfecho primário: resultado neurológico favorável.

6 Incapacidade moderada (estrato superior)
7 Recuperação adequada (estrato inferior)
8 Recuperação adequada (estrato superior)

Os desfechos secundários incluíram morte e resultado neurológico desfavorável em seis meses, definido pelas categorias de 4 a 6 da escala de Rankin modificada.

Escala de Rankin modificada
0 Ausência de sintomas  

 

Resultado neurológico favorável.

1 Ausência de incapacidade significativa
2 Incapacidade leve
3 Incapacidade moderada
4 Incapacidade moderadamente grave Desfecho secundário:

resultado neurológico desfavorável.

5 Incapacidade grave
6 Morte

Os eventos adversos pré-especificados incluíram pneumonia, sepse, sangramento, arritmias, suspeita de hipertensão intracraniana e crises convulsivas.

Resultados

Foram alocados 1.700 pacientes entre março/2018 e setembro/2021, com média de idade de 60,2 anos, sendo 21% mulheres, provenientes de 63 unidades de terapia intensiva (UTIs) de 17 países.

Foram direcionados 847 (49,8%) dos pacientes ao grupo intervenção e 853 (50,2%) ao grupo controle. Um total de 8.861 aferições da paCO2 foram realizadas.

O abandono da meta de paCO2 se deu em 68 pacientes (8,9%) no grupo hipercapnia e 25 pacientes (3%) no grupo controle, por motivos que incluíram transferência de hospital, retirada do consentimento, alta precoce do CTI, suspensão das medidas suportivas ou óbito.

Os dados referentes ao desfecho primário foram omitidos em 7,6% dos pacientes.

No grupo intervenção, 332 da 764 pacientes (43,5%) apresentaram resultado neurológico favorável em 6 meses, enquanto no grupo controle, 350 de 784 pacientes (44,6%), com risco relativo de 0,98 (IC 95%: 0,87 – 1,11 – P = 0,46).

Em relação à mortalidade em 6 meses, foram registrados 393 óbitos (48,2%) entre 816 pacientes no grupo intervenção e 382 óbitos (45,9%) entre 832 pacientes no grupo controle, com risco relativo de 1,05 (IC 95% 0,94 a 1,16).

Por fim, desfechos neurológicos desfavoráveis foram observados em 53,4% (407 de 762 pacientes) no grupo intervenção, comparado a 51,3% no grupo controle (400 de 779 pacientes).

Os eventos adversos pré-especificados não diferiram entre os grupos.

Saiba mais: EM. PED 2023: Via aérea e ventilação na parada cardiorrespiratória pediátrica

Conclusão e mensagens finais 

  • O sucesso do tratamento da parada cardiorrespiratória extra-hospitalar deve ser avaliado não somente pela sobrevida, mas especialmente pela funcionalidade neurológica em médio e longo prazo.
  • A manipulação de variáveis fisiológicas, como temperatura, oxigenação, pressão arterial e paCO2 tem sido objeto de estudos clínicos recentes.
  • O racional fisiopatológico da hipercarbia em pacientes comatosos reanimados após PCR é aumentar a perfusão e a oferta cerebral de oxigênio.
  • O presente estudo demonstrou que um alvo de hipercapnia leve não implicou em melhora de desfechos neurológicos ou mortalidade em 6 meses.
  • Os pontos fortes do estudo TAME incluíram o grande poder estatístico e o envolvimento de vários países da Oceania, Europa, Oriente Médio, Ásia e América do Norte.
  • As principais limitações do estudo foram a ausência de cegamento dos grupos para os médicos assistentes; a falta de documentação de condutas clínicas que extrapolassem as orientações do protocolo; a possível atenuação de diferenças entre os grupos pela hipercarbia ter sido comum no momento da randomização; a maior proporção de abandono da meta de paCO2 no grupo intervenção; e a perda significativa de dados relativos ao desfecho primário.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Eastwood, G. et al. Mild Hypercapnia or Normocapnia after Out-of-Hospital Cardiac Arrest. NEJM, June 15, 2023. DOI: 10.1056/NEJMoa2214552.