Leite: vilão ou herói para a saúde?

O leite e seus derivados compõem parte importante de dieta em países ocidentais. Em geral, é um alimento considerado saudável, especialmente pelo cálcio.

O leite e seus derivados compõem parte importante de dieta em países ocidentais. Em geral, é um alimento que tem sido considerado saudável, especialmente por seu conteúdo de cálcio. Em teoria, maior aporte de cálcio poderia auxiliar na mineralização óssea e, com isso, reduzir riscos de fraturas na terceira idade. Baseadas nisso, várias recomendações dietéticas ocidentais, incluindo as dos Estados Unidos, orientam ingestão de leite e derivados em quantidades até cinco vezes a que é de fato consumida no dia a dia.

Porém, o leite não é feito só de cálcio. Pelo contrário, possui uma composição complexa que inclui vários nutrientes essenciais além de hormônios como IGF-1, progestágenos, estrogênios e outros. Além disso, várias técnicas de processamento do produto resultam em outras alterações de composição: a pasteurização é essencial para eliminação de patógenos, a fermentação permite desnaturação de proteínas e redução do conteúdo de lactose, além da alteração da composição bacteriana, o fracionamento permite subprodutos como leites de baixo conteúdo de gordura e whey e a fortificação permite adesão de outros componentes como vitamina A e vitamina D.

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Aumentar o consumo de determinado alimento unicamente por um de seus componentes pode resultar, até mesmo, em alguns riscos para a saúde. Por isso, uma equipe da Faculdade de Medicina de Harvard publicou, esse ano, uma revisão sistemática no periódico New England Journal of Medicine sobre o leite e seus potenciais benefícios e malefícios.

vidros de leite em cima de uma mesa

O leite e a saúde

Um dos argumentos que advogam a favor da ingestão de leite é o efeito sobre o crescimento. O alimento seria importante para crianças por estimular o crescimento e, de fato, as pesquisas mostram que o consumo de leite na infância resulta em maior altura. O artigo atribui esse resultado à presença de hormônios anabolizantes naturais do leite, além da composição de aminoácidos que favorece vias hormonais e genéticas de crescimento nos humanos.

Quanto aos efeitos de uma maior altura, os resultados mostram tanto riscos quanto benefícios. Enquanto maior estatura está associada a menor risco de doenças cardiovasculares, ela também se associa a maior risco de cânceres e fraturas de quadril.

Quando falamos de saúde óssea e do risco de fraturas, o leite falha em cumprir algumas das expectativas e previsões. Muitas pesquisas mostram que, apesar de a ingesta de cálcio realmente contribuir para a mineralização óssea, esse efeito desaparece rapidamente quando a suplementação do nutriente é suspensa. Ou seja, a estratégia ingerir grandes quantidades de leite em determinada fase da vida a fim de fazer uma “reserva óssea” não funciona, na realidade.

Na verdade, vários estudos sugerem um limiar para os benefícios na ingestão de cálcio, de forma que os efeitos benéficos surgem até determinada quantidade ingerida por dia e, a partir daí, não há mais efeito perceptível (provavelmente, pela capacidade do corpo em eliminar os excessos). Outros estudos sugerem, inclusive, que a reposição excessiva pode aumentar os riscos de fratura. Além disso, paradoxalmente ao esperado, os países em que o consumo de leite é mais alto são também os que têm maior incidência de fratura de quadril.

Outro campo cheio de especulações ao redor do leite é a síndrome metabólica. Por muito tempo, o leite tem sido promovido como um alimento protetor contra a obesidade. De todos os seus derivados, o iogurte é o único que foi associado a menor peso nas pesquisas. Provavelmente, esse efeito resulta da natureza probiótica desse alimento, alterando a microbiota intestinal de forma favorável à perda de peso.

O leite em si e seus demais derivados, entretanto, não surtiram o mesmo efeito. Nas pesquisas, foi observado que o leite não reduz o peso corporal, mesmo quando comparado a outros alimentos como bebidas adoçadas com açúcar, sucos de frutas e até água. Da mesma forma, o leite reduzido em gordura (como o desnatado) não apresentou vantagem em relação ao leite integral, contrariando várias opiniões tanto populares quanto profissionais.

Também tem sido sugerido que o leite poderia auxiliar no controle da hipertensão arterial sistêmica, no perfil lipídico e também na prevenção de doenças cardiovasculares. Essa associação, provavelmente, vem da inclusão do alimento e seus derivados na dieta DASH, conhecida como uma intervenção dietética com boa eficácia para redução da pressão arterial.

Os resultados das pesquisas nesse aspecto costumam ser conflitantes. É importante lembrar que muitas pesquisas com alimentos envolvem a comparação entre um e outro em substituições nas dietas. Ou seja, o resultado pode variar, de acordo com os itens em questão. Alguns estudos que investigaram a relação entre o leite e o risco de doença coronariana evidenciaram menor risco quando comparado a quantidades equivalentes de carne vermelha, porém mostraram maior risco quando comparado com nozes ou peixes. Os mesmos resultados foram encontrados para o risco de acidente vascular encefálico.

Logo, as pesquisas não permitem afirmar que leite seja ou não “saudável” do ponto de vista cardiovascular, com os resultados dependendo mais de quais alimentos poderiam estar substituindo-o.

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Já quanto ao diabetes mellitus (DM), existe a crença de que o leite possa desencadear o DM tipo 1 (por reação cruzada entre as proteínas do leite e antígenos das células beta-pancreáticas). Porém, pesquisas envolvendo crianças não mostraram diferenças na incidência da doença entre aquelas que ingeriram leite e as que consumiram versões hidrolizadas do produto. Ao contrário, o consumo de leite e derivados tem sido associado a menor risco de DM tipo 2, porém essa relação também não foi comprovada de forma satisfatória dos estudos.

Mais uma vez, os resultados dependiam dos alimentos com os quais o leite era comparado: o risco de diabetes era menor quando os laticínios eram comparados a bebidas adoçadas com açúcar ou sucos de frutas, mas era maior quando comparados a café, por exemplo.

A relação entre consumo de leite e derivados e incidência de câncer é outro assunto muito discutido e os resultados não são tão satisfatórios. Alto consumo desses alimentos tem sido consistentemente associados a maior incidência de cânceres de próstata e mama, além de outros com relação mais incerta (como o câncer de endométrio, por exemplo). A causa proposta para isso seria o alto conteúdo hormonal do leite (em especial, de IGF-1). Ao contrário, a relação parecer ser inversa para o câncer colorretal, supondo-se que o fator protetor nesse caso seria o alto conteúdo de cálcio nos laticínios.

O maior problema nesse aspecto é que a maior parte dos estudos foram realizados com participantes de meia idade ou mais velhos, enquanto a maioria dos fatores de risco para câncer atuam na infância e na vida adulta.

Outra associação patológica entre leite e saúde é a sua relação com alergias. Alguns relatos esparsos sugerem que os laticínios podem desencadear reações atópicas e favorecer crises de asma e alergias alimentares, mesmo na vida adulta.

Logo, com tantas associações entre esses alimentos e diferentes aspectos da saúde, surge a preocupação em relação à mortalidade geral. Em uma metanálise de 29 estudos de coorte, o consumo de leite (tanto integral quanto em suas formas de baixa-gordura) não mostrou associação com aumento da mortalidade em geral. Mais uma vez, o resultado variou conforme as comparações: consumo de leite e derivados apresentou relação com menor mortalidade quando comparado a carne vermelha processada e ovos; mortalidade similar quando comparado a carne vermelha não processada, aves e peixes; e maior mortalidade quando comparado a fontes de proteína vegetal.

Outros fatores envolvidos

Muitos advogam a favor do consumo de leite orgânico, ao invés do convencional, por teoricamente apresentar menor contaminação hormonal e por agrotóxicos. De fato, o leito orgânico tem maiores concentrações de ácidos graxos insaturados e beta-caroteno, provavelmente resultante da alta ingesta de grama pelas vacas leiteiras desse tipo de produção.

Porém, não existem estudos que tenham, de fato, comparado os efeitos de uma ou outra forma de produção para a saúde humana.

Outro fato importante de se lembrar é que os alimentos interferem em nossa saúde de forma direta e indireta também. A produção de leite, especialmente no processo industrial, resulta em produção de gases estufa, poluição/consumo de água e promoção da resistência bacteriana a diversos antibióticos em taxas de 5 a 10 vezes maior (por unidade de proteína) que a produção de produtos vegetais (soja, outros legumes e a maioria dos grãos).

Conclusão

O leite e seus derivados são alimentos ricos em macro e micronutrientes, podendo certamente contribuir para a nutrição humana. Porém, todos os nutrientes em questão podem ser obtidos de outras fontes alimentares, o que ressalta que os laticínios não são verdadeiramente essenciais.

Quando olhamos para as evidências apresentadas no artigo, percebemos que o leite não tem benefícios evidentes em algum aspecto específico da saúde, podendo até mesmo aumentar risco de algumas doenças como os cânceres quando consumido em excesso. Ao mesmo tempo, também vale relembrar que pesquisas em nutrição frequentemente analisam alimentos em comparação entre si, o que praticamente inviabilizada caracterizar um ou outro como “vilão ou herói”.

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O objetivo do artigo foi analisar criticamente sugestões dos órgãos de saúde estadunidenses quanto a orientar a população (tanto profissional quanto leiga) a aumentar o consumo de leite e seus derivados. É importante pensar nos resultados dessas medidas tanto no âmbito de saúde individual quanto global, inclusive envolvendo as questões ambientais. O artigo conclui o assunto sugerindo recomendações mais razoáveis como consumir 0 a 2 porções desses alimentos por dia.

Quanto à prescrição dietética e nutricional, os benefícios do leite vão depender da qualidade geral de cada paciente em específico. Em populações com bom aporte nutricional e dieta variada, o leite é pouco necessário, sendo possível compensar suas principais vantagens nutricionais (cálcio e vitamina D) com outros alimentos (no caso do cálcio) e suplementos (no caso da vitamina D). Em populações com menor acesso à dieta variada, porém, o leite pode ser um ótimo aliado para complementação das necessidades nutricionais.

Referência bibliográfica:

WILLET, Walter C.; LUDWIG, David S.. Milk and Health. New England Journal of Medicine, [s.l.], v. 382, n. 7, p.644-654, 13 fev. 2020. Massachusetts Medical Society. http://dx.doi.org/10.1056/nejmra1903547

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