A história do encarceramento no mundo sempre foi marcada pelo descumprimento da lei e ausência de direitos humanos e sociais básicos. Até o século XVIII, penas cruéis e desumanas eram as únicas observadas nas descrições do cárcere no mundo. A privação de liberdade não era compreendida como uma pena com um fim ressocializador, mas meramente punitivo. As provas para aquisição de informações legais também consideravam a tortura como instrumento, com isso o encarceramento era considerado um meio e não o fim da punição, com ênfase sempre no rompimento da efetivação da dignidade da pessoa humana.
No Brasil a história não é diferente. De acordo com Di Santis, Engbruch e D’élia (2012), até 1830 não existia código penal e penas corporais como: açoite, mutilação e queimaduras, confisco de bens e multas, além de penas públicas de humilhação do réu era uma prática comum no Brasil. Parece que mesmo com todas as reformas realizadas em nosso direito penal e em nosso sistema carcerário, pautadas em convenções internacionais e leis mundiais de defesa de direitos humanos e em nossa própria carta magna, o imaginário social continua ligando o cárcere como um meio e não como fim.
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Atualmente, o sistema penitenciário brasileiro vem sendo marcado por rebeliões, massacres e verdadeiras guerras de facções em diversos estados brasileiros. Os presídios superlotados, com uma população carcerária em condições precárias, que em nada objetivam a ressocialização, em contraste ao grande aparato legislativo que busca a garantia dos direitos fundamentais do preso, entre outras, como tratados e convenções e a própria constituição federal da república. A negação desses direitos, principalmente a negação do direito à saúde, por uma visão bioética e biodireito constroem o conceito de mistanásia.
Mistanásia
A mistanásia, também chamada de eutanásia social, pode ser considerada como a morte miserável, fora ou antes do seu tempo natural. Na maioria dos casos estudados, há uma relação com o poder do Estado. Uma das formas mais comuns de mistanásia é em relação com a saúde. A omissão de socorro estrutural do Estado atinge milhões de pessoas. No sistema prisional, temos atenção à saúde dos presos, mas em muitos casos os profissionais atuam em emergências e com o produto final do adoecimento, do esquecimento da proposição da reinserção.
Os dados sociodemográficos do Brasil, revelam que a maioria das pessoas que estão no cárcere privado são pretas, jovens de 18 a 30 anos, com baixa escolaridade e advindas de classes sociais mais desfavorecidas. Além disso, o crescimento populacional do cárcere potencializou questões de geração de insalubridade, doença e morte neste locais. Neste cenário, a mistanásia, torna-se comum em muitos ambientes que deveriam proteger direitos humanos e ressocializar indivíduos a sociedade. A interrupção da vida, não pode acontecer de forma não natural em instituições que devem realizar a proteção dessas pessoas.(LERMEN, et. al. 2015)
Como evitar a mistanásia
Condições são importantes para compreender a mistanásia e como podemos evitá-la. Políticas sociais de saúde direcionadas a essa população, como: Lei de Execução Penal (LEP), plano nacional de saúde no sistema penitenciário e a política nacional de atenção integral a saúde prisional, foram criadas a fim de proteger a saúde da população carcerária e proteger os direitos humanos e sociais dessa população. No entanto, o descaso público promove a necessidade de ações constante do ministério público e de agencias protetoras de direitos humanos. Esse espaço, que deveria ser de cuidado, por mais que o imaginário social compreenda ao contrário, não propõe tais condições.
O cuidado está intimamente relacionado ao combate a mistanásia. De acordo com Santos et al. (2013), o cuidado é inerente ao ser humano. Consiste em respeitar a dignidade humana, na sensibilidade diante do sofrimento, na ajuda a enfrentá-lo e superá-lo mesmo que seja na aceitação do inevitável. A sociedade se afasta da lei , quando em condição de vingança a marginalização de presos compreende que esses não devem ser cuidados. Esse pensamento colabora para que esses ambientes sejam escolas sistemáticas do crime e desenvolvimento de doença e morte. Não importa qual seja o crime cometido, deve o estado proteger e ressocializar.
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Cuidados de enfermagem
O cuidado em ambientes como o cárcere pode contribuir com melhoria na influência de relações, contribuindo como compreende o contexto das relações humanas. Nas unidades de restrição de liberdade, possui-se uma obscuridade e relações sociais, que a sociedade refuta. Esse contexto de exclusão sem práticas de cuidado promove graves desconstruções nos processos de ressocialização.
No caso das unidades privadoras da liberdade humana, como ambiente de cuidados, essa relação talvez seja ainda mais complexa, pois estes locais são a parte obscura, que recusamos enquanto a sociedade a olhar para esse público. As práticas da assistência a saúde de presos, objetiva produzir mudanças e efeitos positivas em suas vidas. O saber científico é fundamental para que essas condições sejam avaliadas e constantemente melhoradas.
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Desta forma, Barbosa et.al. revela que: “ Assim, as atividades realizadas pela equipe de enfermagem devem ser orientadas pela percepção das demandas que emergem dos pacientes em consonância com as políticas públicas vigentes”. A seguir vamos ver no estudo scoping review de Barbosa e.t al. (2019) trazendo-nos o conhecimento sobre implicações referentes a estudos diversos sobre a temática:
IMPLICAÇÕES |
Um sucesso importante para o cuidado de saúde mental foi a adoção de um sistema de encaminhamento aberto e um enfermeiro psiquiátrico realizando avaliações de triagem na recepção. |
A realização de triagem pelos enfermeiros foi importante para o cuidado aos internos de saúde mental, pois houve maior envolvimento nas avaliações iniciais nas prisões após a introdução do modelo de atenção e possibilitou maior tempo para os demais profissionais para a prestação de outros serviços, como tratamento e planejamento. |
A intervenção intensiva de gestão de casos abrangendo os períodos de encarceramento e libertação de indivíduos infectados pelo HIV foi tão eficaz para prisioneiros libertados como um programa abrangente de planeamento de alta pré-libertação, em termos de acesso aos cuidados médicos. |
O trabalho dos enfermeiros psiquiátricos nos serviços de saúde primários das prisões garantia do ótimo funcionamento do serviço de saúde. |
Os enfermeiros podem fazer parcerias com organizações de justiça criminal para desenvolver, implementar e avaliar programas para assegurar que as necessidades de saúde das pessoas envolvidas com justiça criminal e suas famílias sejam atendidas. |
Para efetivamente lidar com os problemas complexos dos indivíduos em liberdade condicional, o sistema de saúde e, dentro disso, profissionais de enfermagem, devem começar a integrar a influência do envolvimento a longo prazo na vida correcional e criminal na avaliação e tratamento desses indivíduos. |
Novas formas de trabalho por enfermeiros dentro da prisão começaram a criar melhores serviços para os presos. |
Caracterização das implicações relacionadas à assistência de enfermagem no sistema prisional. (BARABOSA et.al, 2019)
Indubitavelmente, os cuidados de enfermagem melhoram a assistência prisional, contribuindo para práticas que refutam a mistanásia e também para ressocialização. Diversas práticas podem ser incorporadas ao processo de reinserção social que se relacionam com a saúde, como por exemplo, práticas relacionadas ao aprendizado de profissões, educação no processo de ressocialização, esporte, educação, mas entre tantas coisas, a primeira prática é assegurar a dignidade humana.
Diversos estudos mostram que os resultados da introdução da enfermagem, aliado ao processo de cuidado revelam que a assistência de enfermagem apresenta resultados resolutivos, que proporcionam saúde integral e modificam a vida de pessoas submetidas ao cárcere, revelando um melhor resultado equiparado a outros cenários distintos. Dessa forma estudos sobre a temática e avaliação dos processos de integração das equipes na proposição da saúde de presos devem seguir as realizadas em outros países como Noruega e Holanda que mudaram seus cenários de forma muito positiva.
A enfermagem pode ser uma grande aliada contrapondo a mistanásia. Embora a modificação deva ser estrutural, evitando superlotação, respeitando a dignidade da pessoa humana, permitir o cumprimento da lei, não só para encarcera, mas para aquelas previstas para assegurar todos os direitos fundamentais. A enfermagem com a proposição do cuidado, pode contribuir com essa lógica de reinserção social. Espera-se que a enfermagem possua mais espaços de cuidado, de educação e pesquisas na área.
Referências bibliográficas:
- Barbosa Mayara Lima, Medeiros Suzane Gomes de, Chiavone Flávia Barreto Tavares, Atanásio Lhana Lorena de Melo, Costa Gabriela Maria Cavalcanti, Santos Viviane Euzébia Pereira. Ações de enfermagem para as pessoas privadas de liberdade: uma scoping review. Esc. Anna Nery, 2019.
- Di Santis, B.M, Engbruch, W. D’elia, F.S. evolução histórica do sistema prisional e a Penitenciária do Estado de São Paulo. Revista Liberdades – nº 11 – setembro/dezembro de 2012
- Souza Santos, F. et. al. Cuidados de enfermagem em situação de cárcere segundo Waldow: entre o profissional e o expressivo. Enfermería Global Nº 31 Julio 2013
- Souza, g. C.; Cabral, k. D. S.; Leite-salgueiro, C. D. B. Reflexões sobre a assistência em enfermagem à mulher encarcerada: um estudo de revisão integrativa. Arq. Cienc. Saúde UNIPAR, Umuarama, v. 22, n. 1, p. 55-62, jan./abr. 2018.
- Souza, M.O.S. A Prática de enfermagem no sistema penal : limites e possibilidades / Mônica Oliveira da Silva e Souza. – 2006 63 f.