O sofrimento humano e sua natureza holística

O objeto de estudo do Cuidado Paliativo é o sofrimento humano.Se os problemas dos doentes são tão complexos, como o paliativista organiza sua forma de ação?

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Em 1668, o dramaturgo grego Ésquilo já afirmava de forma extremamente atual que “os sofrimentos humanos têm facetas múltiplas: nunca se encontra outra dor do mesmo tom”. 

Segundo Cassel, o sofrimento “é um estado de aflição severa, associado a acontecimentos que ameaçam a integridade (manter-se intacto) de uma pessoa. Sofrimento exige consciência de si, envolve as emoções, tem efeitos nas relações pessoais da pessoa, e tem um impacto no corpo.”

Freud de forma mais fatídica dizia, em 1930, que “o mal-estar é inerente à condição humana”. E o pior: em sua vasta obra ele não nos mostra soluções para tal angústia.

Já a famosa definição da OMS nos traz o desafio: “Cuidado Paliativo é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual”.

A partir de tais definições, em última análise, podemos inferir que o objeto de estudo do Cuidado Paliativo é a aflição humana. Diante das características individuais do sofrimento, o trabalho do paliativista se torna árduo e complexo. Há quem diga que a existência do paliativista é pretensiosa uma vez que combater e prevenir o martírio (em todas as suas dimensões) de todos os pacientes é uma missão impossível. 

Pois bem. Se os problemas dos doentes são tão complexos, como o paliativista organiza sua forma de ação?

As faces do sofrimento

A equipe de Cuidados Paliativos Geriátricos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo brilhantemente criou o DAM (Diagrama de Abordagem Multiprofissional). Com ele, dividiu as necessidades do doente em quatro grandes dimensões: Físico, Psicológico, Espiritual e Social.

A função da equipe ao aplicar o DAM na prática é identificar causas ativas e causas potenciais de sofrimento. A partir disso, tomam-se atitudes. Nem sempre o problema será erradicado, mas o movimento de identificação e raciocínio já se torna por si só terapêutico. 

Dimensão Física: os sinais que o corpo dá

Controlar sintomas é antes de tudo identificar prováveis causas. Exames laboratoriais ou de imagem podem ser o primeiro passo ao contrário do que muitos imaginam. 

Dor (neuropática ou nociceptiva), dispneia, astenia, depressão, confusão, constipação, diarreia, lesões por pressão, disfagia, lesões orais, anorexia, insônia, náuseas, vômitos, ansiedade e tantos outros sintomas devem ser ativamente investigados através de perguntas diretas. Quantificar a frequência e intensidade deles orienta uma comparação longitudinal das abordagens (farmacológicas e não farmacológicas). 

Percebe-se a refratariedade dos sintomas às medidas tomadas – quanto menor a resposta, pior prognóstico. A aderência, sondas, ostomias, imobilidade, comorbidades, status performance (Escala de Performance de Karnofsky) são investigados. A identificação de potenciais problemas se torna tão relevante quanto de atuais. 

As atitudes a serem tomadas incluem tratamento farmacológico, não farmacológico, intervencionista (sim, o doente pode se beneficiar de um trial  na terapia intensiva ou de uma cirurgia paliativa); abordagem multiprofissional; esclarecimento diagnóstico e prognóstico; definição de Diretrizes Antecipadas de Vontade. 

Os objetivos são o controle de sintomas, a alocação adequada de recursos, a realização de Diretrizes Avançadas e o não prolongamento artificial de vida. Importante ter atenção para não subestimar sintomas: não se quantifica dor através de exames laboratoriais ou tomógrafos, o que não pode de maneira alguma deslegitima-la. 

Leia também: Conheça os principais mitos sobre Cuidados Paliativos

Dimensão Psíquica: a mente e seus dilemas

Jacques Salomé de forma provocativa afirma que “qualquer sofrimento (…) pode ser entendido como um sinal, um convite para mudar algo em nosso modo de vida.” Neste trecho, sofrimento aparece como sinônimo de conflito psicológico. 

Incontáveis são os convites dos enfermos às equipes de saúde, a maioria deles ignorados. Somatizações (invites inconscientes), angústias e medos são diversas vezes vistos como supérfluos quando comparados ao que se pode mensurar ou palpar. Oportunidades de metamorfoses épicas podem ser perdidas se esta dimensão do sofrimento não emergir.

Medo de morrer, raiva, tristeza, barganha, aceitação, culpas, preocupações, não aceitação da morte, ausência de significado de vida, conflitos afetivos familiares, conspiração do silêncio, risco de luto patológico são levados à superfície através de uma boa comunicação.

O (a) psicólogo (a) busca resignificar mágoas, culpas e medos. Resgatar e reforçar mecanismos de enfrentamento; a aceitação da morte; a ressignificação da vida e prevenir luto patológico. 

Acompanhamento familiar, encaminhamento externo, psicoterapia de apoio ou breve são essenciais para uma condução adequada do caso. Por fim, não podem faltar reuniões familiares. Quantas forem necessárias para desmistificar pensamentos mágicos ou conceitos médicos irreais.

Dimensão Social e Familiar: o paciente como produto do meio

Cuidar dos familiares se torna tão importante quanto cuidar do paciente. Saber em qual ambiente e circunstâncias está inserido o individuo redimensiona expectativas e reduz dificuldades de acesso à terapêutica. 

Alguns complicadores sociais podem ser o abismo entre a indicação do profissional de saúde e a concretização dela. A saber, são eles: ausência de cuidador, baixa renda familiar, dificuldade de atendimento médico, conflitos familiares, estresse do cuidador, pendências legais ou financeiras, rede de suporte insuficiente, dificuldade de emissão de atestado de óbito, local para sepultamento ou cremação.

Alguns pontos podem não parecer relevantes e provocarem sofrimento importante no doente. Como, por exemplo, a necessidade de resolução de uma pendência legal ou uma pequena dívida. 

A ausência de uma rede de suporte traz consequências objetivas e não apenas emocionais. O CID-10 traz em seu código Z.60.2 “viver só” como um problema relacionado com o meio social. Ironicamente, nunca observei tal CID descrito em algum prontuário médico. 

Há muito o que se caminhar nesta direção. Os problemas sociais dos doentes merecem tentativa solução: providenciar cuidador, orientação legal e financeira, acompanhamento individual, acompanhamento familiar, orientação sobre óbito, institucionalização e reunião familiar.

Os objetivos são:

  • Organizar testamentos e benefícios;
  • Regularizar questões financeiras;
  • Providenciar funeral e atestado de óbito;
  • Ser cuidado por alguém;
  • Amparar o cuidador e a família;
  • Definir local de óbito. 

Veja um resumo do que rolou no Primeiro Congresso de Cuidados Paliativos do Rio de Janeiro:

Dimensão Espiritual: transcendendo a matéria

Não somente de carne somos feitos. Mesmo os ateus apresentam questões espirituais a serem tratadas, questões essas que não se limitam ao cunho religioso.

Conflitos com Deus, conflitos religiosos com familiares, proselitismo, restrição ao culto, destruição de valores, ritos ou sacramentos pendentes, promessas e obrigações pendentes, ausência de sentido espiritual, expectativas miraculosas e culpa religiosa devem ser investigados por um capelão. 

Busca-se estar em paz com o Criador, receber o perdão de Deus, receber ritos de sua tradição, sentimento de transcendência, síntese de vida e legado espiritual. Isso acontece através de orientação espiritual e religiosa, estímulo de espiritualidade, contato com sacerdote da tradição e orientações familiares

Conclusão

Depois deste trabalho minucioso e multidisciplinar as chances de um fim de vida sofrido reduzem, mas não se esgotam. Cabem a nós humildade e perseverança diante da complexidade humana. O que me conforta em última instância é que alguns sofrimentos viram poema.

 

Artigo escrito em conjunto com: 

Susana Medeiros Ramos – Psicóloga Clínica e Hospitalar. Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Especialista em Psicologia Médica pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM-UERJ). Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Atualmente é psicóloga da Unimed Regional Sul Goiás atuando no Hospital Unimed em Itumbiara – GO.

Referências:

 

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