Pacientes diabéticos não estão recebendo tratamento de acordo com guidelines

Estudo investigou se o treinamento aumentaria a probabilidade de prescrição de medicações para redução de risco cardiovascular em pacientes diabéticos.

O diabetes mellitus tipo 2 é uma das doenças mais comuns e importantes de toda a medicina, visto que é fator de risco independente para desfechos cardiovasculares como infarto do miocárdio, AVC, doença arterial periférica (DAOP) ou insuficiência cardíaca, bem como por aumentar o risco de lesões microvasculares tais como nefropatia diabética, retinopatia e neuropatia. Dados de um estudo publicado no Lancet em junho de 2023 mostram que o número de pacientes diabéticos no mundo está crescendo, com uma projeção de cerca de 1,3 bilhões de casos até 2050.

Visto que é um importante problema de saúde pública e até mesmo econômico (a cada quatro dólares gastos em saúde nos Estados Unidos, um dólar é para pacientes diabéticos), é natural o interesse em se pesquisar e melhorar as perspectivas de tratamento. Isso vem acontecendo com o diabetes, sobretudo nos últimos anos e nos próximos. Após anos de marasmo terapêutico, com a chegada dos inibidores de SGLT-2 e dos agonistas de GLP-1 e suas moléculas derivadas, finalmente aumentamos o leque de opções. Não apenas isso como também pudemos, a partir da elaboração de trials que avaliaram o impacto cardiovascular direto dessas drogas (e renal), identificar terapias que podem beneficiar os pacientes além do controle glicêmico. É o caso da maioria das opções dentro dessas duas classes medicamentosas citadas.

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Com tanto avanço em tão pouco tempo, duas coisas são comuns: primeiro, a dificuldade ao acesso pelos pacientes (algo extremamente comum no Brasil sobretudo) devido aos custos associados a esses tratamentos e, em segundo lugar, a inércia terapêutica por parte das equipes médicas assistentes, que podem não estar 100% “up-to-date” ou mesmo apresentar uma certa resistência a novos tratamentos com os quais se sentem sem experiência pessoal o suficiente para indicar. Nesse contexto, foi realizado um ensaio clínico randomizado (RCT) para investigar se o treinamento de clínicas de cardiologia nos Estados Unidos aumentaria a probabilidade de prescrição de medicações com o objetivo de redução de risco cardiovascular para pacientes diabéticos. O estudo foi publicado este ano no JAMA.

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Novo estudo e métodos

O COORDINATE TRIAL foi um RCT realizado nos Estados Unidos entre 2019 e 2022. Foram randomizadas 43 clínicas de cardiologia que atendem pacientes diabéticos e doença aterosclerótica cardiovascular (seja doença arterial coronariana, IAM prévio, AVC prévio ou doença arterial periférica) para intervenção de um grupo de educadores, composto por um cardiologista e um endocrinologista ou clínico, com o objetivo de treinar a equipe assistente nos protocolos atuais sobre diabetes e risco cardiovascular.

Pacientes considerados otimizados do ponto de vista de tratamento de diabetes e redução de risco cardiovascular, basicamente, seriam aqueles que estivessem em uso de iECA, estatinas de alta potência e um antidiabético com ação cardiovascular comprovada, um iSGLT-2 ou agonista de GLP-1.

Além da randomização das clínicas, os pacientes também foram selecionados. Foram incluídos aqueles que ainda não estavam em uso das três medicações descritas.

O objetivo foi avaliar se a intervenção proposta (baseada em avaliação de barreiras locais, cuidado coordenado entre cardiologistas e diabetologistas — endocrinologistas ou clínicos — e educação nos guidelines mais recentes) aumentariam a prescrição e o uso de medidas baseadas em evidências para redução de risco de novos eventos cardiovasculares, em seis meses e um ano após a intervenção.

A intervenção se dava em seis passos. Em primeiro lugar, um trio composto por cardiologista, endocrinologista e um especialista focado na intervenção avaliava os cuidados locais de cada clínica, possíveis barreiras para prescrições e eventuais soluções. Após, o trio elaborava com o corpo clínico local estratégias para superar as barreiras. Em terceiro lugar, foi estabelecido um plano de coordenação de cuidado e maior interação entre os cardiologistas, endocrinologistas e médicos da atenção primária das clínicas. O quarto passo foi a educação aos médicos, com vídeos, conferências mensais e discussões locais sobre o tema. Havia ainda o feedback por parte da equipe sobre eventuais dificuldades encontradas e dúvidas, e por fim, também era disponibilizado material sobre o assunto aos pacientes.

As medicações incluídas eram as seguintes:

  • Estatinas: Atorvastatina 40 a 80 mg ou Rosuvastatina 20 a 40 mg/d;
  • iECA/BRA: qualquer um dessas classes;
  • iSGLT-2: Empa, dapa ou canagliflozina;
  • Agonista de GLP-1: Lira, Sema ou Dulaglutida

Resultados

Ao final, 20 clínicas receberam intervenção (459 pacientes) e 23 clínicas mantiveram o cuidado usual (590 pacientes). A média de idade foi de 70 anos; 68% dos pacientes eram masculinos, sendo apenas 16% negros. Oitenta e sete por cento dos participantes tinham doença arterial coronariana (DAC), 27% tinham AVC prévio ou doença na carótida e 17% com doença arterial periférica. Cerca de 29% dos participantes tinham insuficiência cardíaca, não definida quanto à fração de ejeção.

No início do estudo, apenas cerca de 14% dos pacientes em ambos os grupos estavam recebendo o tratamento otimizado com as três drogas.

Após os 12 meses de estudo, 37,9% dos pacientes no grupo intervenção passaram a receber o tratamento com as três drogas. Já no grupo controle, apenas 14,5% passaram a receber a combinação das três medicações (OR ajustado 4,38; IC 95%, 2,49 – 7,71; P < 0,01) — lembrando que a randomização incluiu apenas pacientes que no início não recebiam as três medicações.

Ao final dos 12 meses, houve também um aumento considerável na prescrição individual de cada medicação de forma independente:

  • iECA/BRAs: 75,1% para 81,4% no grupo intervenção e 69,6% para 68,4% no grupo controle (OR 1,82; IC 95%; 1,14 – 2,91);
  • Estatinas: 66,5% para 70,7% no grupo intervenção e 58,2% para 56,2% no grupo controle (OR 1,73; IC 95%; 1,06 – 2,83);
  • iSGLT-2 ou agonistas de GLP-1: 12,3% para 60,4% no grupo intervenção e 14,5% para 35,5% no grupo controle (OR 3,11; IC 95%; 2,08 – 4,64)

Destaque para o aumento significativo da prescrição dos novos antidiabéticos, sobretudo os iSGLT-2 e agonistas de GLP-1 em ambos os grupos, porém com uma chance 3x maior de prescrição após as intervenções.

O estudo não teve poder suficiente para estabelecer tal relação, porém em uma análise secundária, houve uma tendência não estatisticamente significativa de redução de um desfecho composto semelhante aos “MACEs” (morte por todas as causas, hospitalização por IAM, AVC, IC descompensada ou revascularização de urgência), com um HR de 0,79 (IC 95%; 0,46 – 1,33).

Saiba mais: Diabetes e a modificação climática

Discussão e conclusões

A intervenção proposta, baseada em educação e coordenação de cuidado, criando fluxos de maior interação entre especialidades e informações de mais fácil acesso, proporcionou um aumento de cerca de quatro vezes no número de pacientes que passaram a ter um tratamento otimizado do ponto de vista de risco cardiovascular. Ainda houve um aumento expressivo na quantidade de indivíduos em uso de novos antidiabéticos. Quatro coisas vêm à mente frente a esses resultados:

  • A prescrição otimizada inicialmente era baixa, mesmo em centros dos Estados Unidos, o que nos faz pensar sobre os motivos — custos, conhecimento sobre as medicações, etc.
  • A implantação de um fluxo para otimização da prescrição e a educação sobre novas diretrizes pode melhorar a prescrição das medicações;
  • Se nos Estados Unidos a taxa de pacientes diabéticos e com doença cardiovascular recebendo tratamento otimizado é baixa, é possível imaginar que o Brasil deve também apresentar taxas ruins e (muito) provavelmente piores às observadas nesse estudo
  • É importante que também pensemos em formas de transportar benefícios encontrados nos estudos para a prática médica.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Pagidipati NJ, Nelson AJ, Kaltenbach LA, Leyva M, McGuire DK, Pop-Busui R, Cavender MA, Aroda VR, Magwire ML, Richardson CR, Lingvay I, Kirk JK, Al-Khalidi HR, Webb L, Gaynor T, Pak J, Senyucel C, Lopes RD, Green JB, Granger CB; COORDINATE–Diabetes Site Investigators. Coordinated Care to Optimize Cardiovascular Preventive Therapies in Type 2 Diabetes: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 2023 Apr 18;329(15):1261-1270. DOI: 10.1001/jama.2023.2854.

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