Qual o melhor momento para iniciar o tratamento do diabetes mellitus gestacional?

Pesquisadores realizaram um estudo para responder qual o melhor momento para iniciar o tratamento para diabetes mellitus gestacional.

A prevalência de diabetes mellitus (DM) vem crescendo no mundo todo, bem como o número de gestantes com diabetes, devido uma tendência ao início da gestação tardia e maior incidência de diabetes em populações mais jovens. Cerca de 16-17% das gestações são acometidas por hiperglicemia, sendo que a grande maioria destas (84%) são causadas por diabetes mellitus gestacional (DMG). O diagnóstico do DMG vem evoluindo com o tempo e um dos estudos chave para tanto foi o HAPO trial, publicado no NEJM em 2010.

É sabido que não existe simplesmente um “corte” onde a glicemia começa a aumentar os riscos: o nível da glicemia e o risco de complicações gestacionais e neonatais são contínuos; Porém, com o objetivo de se padronizar o diagnóstico e cut-offs para intervenções, estabeleceu-se com base em dados do HAPO (apesar de que no trial não havia um claro ponto de corte) a estratégia de que, a partir do nível de glicemia no teste oral de tolerância à glicose 75g (TOTG 75g) realizado entre 24 e 28 semanas — glicemia de jejum acima de 92 mg/dL, glicemia uma hora após acima de 180 mg/dL ou glicemia duas horas após maior do que 153 mg/dL —  estaria feito o diagnóstico de DMG.

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Qual o melhor momento para iniciar o tratamento do diabetes melittus gestacional?

Recomendações atuais para início do tratamento do diabetes mellitus gestacional

Atualmente é recomendado dosar a glicemia de jejum no primeiro trimestre de todas as pacientes com o principal objetivo de descartar overt diabetes, ou seja, pacientes que já tinham DM2 (ou outras causas) e não sabiam, onde o valor de corte é o mesmo da população geral (glicemia de jejum maior ou igual a 126 mg/dL). No entanto, valores intermediários (entre 92 e 125 mg/dL) caracterizam uma “hiperglicemia precoce”.

Existem dados, sobretudo de coortes e estudos observacionais que sugerem que o primeiro trimestre da gestação é uma situação onde tal elevação da glicemia de jejum pode trazer prejuízos ao feto, se correlacionando com maior ganho de peso fetal e até mesmo maior mortalidade perinatal quando se compara a mulheres que receberam o diagnóstico e tratamento apenas no final da gestação.

Atualmente, se repetida e confirmada a hiperglicemia, é recomendado pela maioria dos guidelines (inclusive FEBRASGO e Sociedade Brasileira de Diabetes – SBD) a iniciar o tratamento. Contudo, não tínhamos dados advindos de ensaios clínicos randomizados que suportem essa prática.

Novo estudo 

Para tentar responder essa questão, os pesquisadores do grupo TOBOGM realizaram um ensaio clínico randomizado (RCT), multicêntrico, que incluiu 793 gestantes (após exclusão das perdas fetais no primeiro trimestre) com fatores de risco para DMG, avaliadas entre 2017 e 2022, que receberam o diagnóstico no primeiro trimestre (entre 4 e 20 semanas de gestação) segundo os critérios da OMS de 2013. Para isso, foi realizado um TOTG 75 g “precoce” (conforme o critério da OMS), com valores de corte de ≥ 92 mg/dL em jejum, ≥ 180 mg/dL 1 hora após e ≥ 153 mg/dL 2 horas após.

Métodos

Foram selecionados 3 endpoints primários para o estudo:

  • Composto por desfechos adversos neonatais  (Peso ≥ 4.500g, prematuridade, trauma no parto, distócia de ombro, angústia respiratória, necessidade de fototerapia)
  • Doença hipertensiva relacionada à gestação (Pré-eclâmpsia, eclâmpsia ou hipertensão gestacional)
  • Massa magra neonatal (*Porém na análise final, este dado foi incluído como desfecho secundário)

Os grupos foram randomizados para tratamento imediato desde o primeiro trimestre vs. controle, onde o tratamento só seria proposto caso houvesse um diagnóstico de diabetes mellitus gestacional no segundo trimestre, entre 24 e 28 semanas.

As pacientes selecionadas eram maiores de 18 anos, gestação única e com pelo menos um fator de risco para hiperglicemia (DMG prévio, IMC ≥ 30, idade ≥ 40, parente de primeiro grau com DM, macrossomia prévia ou síndrome dos ovários policísticos (SOP). Foram excluídas aquelas com pré-diabetes conhecido, glicemia de jejum ≥ 110 mg/dL ou 2 horas pós ≥ 200 mg/dL (esses valores foram escolhidos pelos autores por motivos de segurança). A randomização ainda foi estratificada para dois grupos, um de maiores níveis glicêmicos (GJ entre 95 e 109; 1 hora pós maior que 191 e 2 horas pós entre 161 e 199) e um grupo de menores níveis (GJ entre 92 e 95; 1 hora pós entre 180 a 190 e 2 horas pós entre 153 e 161), baseado nos níveis de OR 1,75 e 2,0 para complicações gestacionais do estudo HAPO, respectivamente.

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Resultados

O TOTG inicial foi realizado em média com 15,6 semanas; Ao repetir o TOTG 75g entre 24 a 28 semanas, DMG foi diagnosticado “novamente” em 67% das gestantes do grupo controle (interessante: cerca de 30% das pacientes com diagnóstico de DMG precoce não apresentavam mais o diagnóstico quando realizavam o TOTG entre 24 e 28 semanas, dado compatível com estudos prévios). Uma proporção maior de pacientes recebeu tratamento com insulina (58,1 vs 41,4%) no grupo tratamento precoce e também metformina (23,6 vs 10,4%). A média de idade foi de 32 anos, cerca de 23% primigestas e 36% de diabetes mellitus gestacional prévio.

Pacientes recebiam recomendações dietéticas, orientações e aferição de dextros e o início e intensificação do tratamento farmacológico foram consistentes com a literatura e RCTs prévios.

O principal endpoint primário foi a avaliação do desfecho composto por consequências adversas neonatais. O grupo tratamento imediato apresentou o desfecho em 94 de 378 gestações (24,9%), enquanto o grupo controle apresentou 113 eventos de 370 (30,5%), resultando numa diferença de risco absoluta de -5,6% (-10,1 a ,1,2; IC 95%), resultando num RR de 0,82 (0,68 – 0,98; IC 95%) e um NNT de 18. Curiosamente, o principal desfecho que “puxou” o endpoint primário foi stress respiratório, definido como necessidade de ≥ 4 horas de oxigênio suplementar, necessidade de CPAP ou IPAP durante as primeiras 24h de vida). A incidência de óbitos fetais e morte neonatal foi igualmente baixa em ambos os grupos.

Quanto à DHEG, não houve diferença entre os grupos (10,6% no grupo tratamento imediato vs 9,9% no grupo controle; -1,6 – 2,9; IC 95%).

Já a medida da massa massa do recém-nascido foi ligeiramente menor no grupo tratamento imediato (2,86 kg vs 2.91 kg no grupo controle — diferença média ajustada – 0,04g; -0,09 a 0,02; IC 95%), mas cujo impacto clínico não é significativo e considerado como análise secundária devido ao 2º endpoint primário não haver atingido significância estatística — uma estratégia estatística empregada para se avaliar múltiplos desfechos primários.

Considerações sobre o início do tratamento para diabetes mellitus gestacional

Vale destacar que o tratamento imediato não trouxe diferenças entre grupos em eventos adversos sérios porém a proporção de pacientes que recebeu tratamento farmacológico foi alta em ambos os grupos (67,4% no grupo tratamento precoce e 45,8% no grupo controle).

Desfechos secundários

Como principais desfechos secundários, destaque para: 

  • Maternos 
    • Ganho de peso materno, taxa de cesáreas e indução de parto foi semelhante entre os grupos;
    • Qualidade de vida avaliada entre 24 e 28 semanas (questionário EQ-5D): ligeiramente melhor no grupo controle 
  • Fetais:
    • Peso ao nascer: não houve diferença clinicamente relevante (grupo tratamento precoce: 3.258g vs grupo controle 3.348g, apesar de significativa. Não houve diferença significativa em fetos GIG, PIG ou demais desfechos.

Quanto à análise de subgrupos, houve uma sugestão de maior efeito no grupo com glicemias mais elevadas, como esperado.

Conclusão e mensagem prática

Devemos nos atentar que as pacientes selecionadas no estudo eram de alto risco para desenvolvimento de diabetes mellitus gestacional e ao método de diagnóstico empregado: não realizamos rotineiramente TOTG 75g já no primeiro trimestre. Vale destacar que todas as pacientes do grupo controle que receberam diagnóstico entre 24 e 28 semanas foram igualmente tratadas, o que significa que os resultados podem ser de fato atribuíveis ao tratamento das hiperglicemias precoces.

Contudo, algumas considerações: em nosso país, cuja população não foi representada nesse estudo e temos dificuldade no acesso ao TOTG 75 g, ainda carecemos de informações de qualidade sobre o real impacto dessa intervenção; foram excluídas pacientes com pré DM e glicemias de jejum maiores que 110, que talvez pudessem ter maior benefício no tratamento; o impacto do tratamento precoce neste estudo foi discreto e sobretudo puxado por eventos respiratórios leves (houve apenas 3 eventos graves, sem diferenças entre grupos). Outro grande RCT realizado para avaliar o impacto do tratamento de hiperglicemias precoces na gestação em obesas (EGGO trial) falhou em demonstrar benefícios. Juntando as informações, ainda é questionável o valor do tratamento de hiperglicemias leves no início da gestação.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Simmons D, Immanuel J, Hague WM, Teede H, Nolan CJ, Peek MJ, Flack JR, McLean M, Wong V, Hibbert E, Kautzky-Willer A, Harreiter J, Backman H, Gianatti E, Sweeting A, Mohan V, Enticott J, Cheung NW; TOBOGM Research Group. Treatment of Gestational Diabetes Mellitus Diagnosed Early in Pregnancy. N Engl J Med. 2023 May 5. DOI: 10.1056/NEJMoa2214956. Epub ahead of print.
  •  Harper LM, Jauk V, Longo S, Biggio JR, Szychowski JM, Tita AT. Early gestational diabetes screening in obese women: a randomized controlled trial. Am J Obstet Gynecol. 2020 May;222(5):495.e1-495.e8. DOI: 10.1016/j.ajog.2019.12.021. Epub 2020 Jan 9.