A controversa proteção da vacina BCG contra Covid-19: Epidemiologia vs Imunologia

Desde o início da pandemia de Covid-19, diversos pesquisadores sugeriram a possibilidade da vacina BCG ter efeito protetor contra a infecção.

As diferentes tentativas terapêuticas para o combate da síndrome Covid-19, associada ao vírus SARS-CoV-2, continuam. Várias sugestões ou ensaios laboratoriais indicam medicamentos ou estratégias promissoras que poderiam minimizar os efeitos deletérios da síndrome pandêmica que tem assustado o mundo. Desde o início da propagação do novo coronavírus, e devido ao menor número inicial de casos em países onde a vacinação com o Bacillus Calmette–Guerin (BCG) é obrigatória, diversos pesquisadores sugeriram a possibilidade da vacina BCG ter efeito protetor contra a infecção por SARS-CoV-2 (causador da Covid-19).

Tal possibilidade foi levantada formalmente em estudo ecológico proposto por Miller et al. (2020) em que indicava taxas de morbidade de 60 indivíduos por milhão de pessoas em países com vacinação universal com BCG, e de 265 por milhão em países sem essa política vacinal. Diferenças nas proporções também foram observadas para a mortalidade (1:16) quando comparados os mesmos cenários. Escobar et al. (2020) reforçaram essas afirmações ao analisarem 22 países, sugerindo a redução de 10,4% de mortes por Covid-19 em regiões com aumento de 10% do índice BCG. Países como Estados Unidos, Itália, e Espanha que não apresentam vacinação universal com BCG exibiam as maiores frequências e taxas referentes à Covid-19.

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Vacina BCG protegeria contra a Covid-19?

Então, a casualidade entre a vacinação com a BCG vs redução dos casos de Covid-19 existe?

Algumas das principais limitações do estudo de Miller et al. (2020) consistiu na seleção dos países analisados e especialmente ao não considerar que as nações do mundo estavam (e continuam) em diferentes estágios da epidemia por SARS-CoV-2. Adicionalmente os autores citados desconsideraram os casos de infecção latente, comorbidades, fatores sócio-econômicos, implementação de testes diagnósticos e inúmeras outras variáveis de confundimento. Um exemplo para sustentar essas críticas às sugestões de Miller et al.: A BCG não é utilizada na Alemanha há mais de 28 anos e o país apresentou uma das menores taxas populacionais de Covid-19 na ocasião do estudo, o mesmo observa-se na Austrália e vários outros. Diversos estudos posteriores questionaram as conclusões sugeridas por Miller et al. e Escobar et al., com críticas quanto a metodologia utilizada e os resultados distintos obtidos se tivessem corrigido as variáveis de confundimento (Hensel et al. 2020).

Com o progresso dos meses de 2020, tais hipóteses não se confirmaram em diversas localidades como a América do Sul, especialmente o Brasil, Chile e Peru, e outros países que exibiram altas taxas de morbi-mortalidade e apresentam vacinação universal com a BCG. De forma a também tentar evitar problemas ao programa de controle da tuberculose, a Organização Mundial de Saúde (OMS) não recomenda o uso terapêutico da BCG para quadros clínicos ou profilaxia da infecção por Covid-19, e ainda alerta que as indicações inadequadas podem tornar escassos os estoques da vacinação infantil em diversos países do mundo (Schaaf et al., 2020).

Mas haveria aplicabilidade da BCG na terapia anti-Covid-19?

A vacina BCG é composta por cepa de Mycobacterium bovis atenuada, foi desenvolvida por Albert Calmette e Camille Guérin no Institut Pasteur, Paris, em 1921, e foi implementada em diferentes países desde essa década. É a única vacina para proteção contra as formas graves da tuberculose (TB) causada pelo complexo Mycobacterium tuberculosis, como TB miliar e meningite tuberculosa, e licenciada em diferentes países. Apresenta proteção em torno de 10 a 60 anos e efetividade de 0 a 60% aproximadamente. Atualmente está em uso em países com alta incidência de TB, sendo aplicada uma dose única intradérmica em neonatos. Adicionalmente, a BCG apresenta a propriedade de imunomodulação heteróloga às infecções subsequentes causadas por outros patógenos através da indução da imunidade inata de memória (por exemplo por aumento da expressão de receptores TLR, NOD e Lectina-C, e células dendríticas, macrófagos e Natural Killer), ativação linfocitária heteróloga e macrofágica (Gupta, 2020). Devido a esses efeitos imunológicos não específicos, a BCG é, por exemplo, utilizada no tratamento de carcinoma não invasivo de bexiga e de atopias, como a asma, em adultos.

Arts et al. (2018) verificaram, através de um ensaio clínico randomizado, que a vacinação com BGC proporciona proteção efetiva contra a infecção pelo vírus da febre amarela em adultos. Outros estudos indicam efeito protetor contra infecções por Mycobacterium leprae, vírus herpes simplex (HSV), papilomavírus (HPV), Candida albicans, Salmonella, Shigella, Staphylococcus aureus e Plasmodium sp. (Charoenlap et al. 2020, Kumar & Meena, 2020). Yitbarek et al. (2020) realizaram uma revisão sistemática com a análise de estudos que investigaram a aplicabilidade da BCG na prevenção de doenças infecciosas respiratórias, inclusive as virais. Nove manuscritos publicados, de um total de 19.010 artigos iniciais, indicaram efeitos protetores para infecções de trato respiratório superior e inferior, por exemplo, pneumonias como influenza A (H1N1) e vírus sincicial respiratório (VSR).

Em alguns dos estudos abordados, os pacientes vacinados com BCG apresentaram potencialização da resposta humoral e rápida soroconversão. Destaca-se uma maior produção de IFN-γ e IL-10 nos vacinados, e menor incidência de infecções respiratórias. Adicionalmente, em outro artigo citado, a vacinação com BCG previamente à vacinação contra difteria-tétano-pertussis (DTP) gerou melhor efeito protetor do que a coadministração ou posteriormente. Sugere-se que a BCG, através da alteração epigenética mediada por NOD2 no processo de metilação de histonas (H3K4me3) induz a imunidade adaptativa do tipo 1 clássica com formação de células T de memória, potencializa o repertório Th1/Th17, aumento de IL-6, TNF-α, IL-1β, IL-17, IL-22 e TLR4, e a reprogramação dos monócitos (Trained immunity) para a exibição de um fenótipo efetivo, expressivo e duradouro contra a tuberculose e outras infecções, facilitando o clearance viral, clearance de células mortas ou apoptóticas, e a proteção à inflamação pulmonar (Basak et al., 2020; Covián et al., 2020; Kleen et al., 2020).

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Tais contribuições seriam observadas em todas as idades, inclusive em idosos, em indivíduos que exibem imunorreatividade persistente à tuberculina (prova tuberculínica), e especialmente em recém-vacinados (~3 meses). Considera-se que a BCG leva a redução de 17 a 37% da mortalidade infantil por todas as causas infecciosas, especialmente por pneumonia e sepse, e à redução de 70% das infecções respiratórias em adolescentes (Nemes et al., 2018; O´Connor et al., 2020). Tais observações poderiam justificar as manifestações subclínicas ou assintomatologia da Covid-19 observadas em crianças, por exemplo (O´Neill & Netea, 2020).

Por outro lado, uma publicação recente por Hamiel et al. (2020) observou que a indivíduos vacinados com BCG ao nascimento entre 1979 e 1981 e aqueles não vacinados nascidos entre 1983 e 1985 não apresentaram distinção em relação a incidência e gravidade da Covid-19, sugerindo que os efeitos imunomoduladores heterólogos da BCG reduziriam com a idade e poderia não ter benefícios diretos para o combate da nova síndrome pandêmica. Atualmente existem vários ensaios clínicos com a proposta de avaliação dos possíveis efeitos protetores da vacinação contra a síndrome associada ao SARS-CoV-2. Dentre os mais de 17 ensaios clínicos registrados, temos: África do Sul – TASK-008-BCG-CORONA; Austrália – BRAVE trial, NCT04327206; Brasil – Covid-19 BATTLE; Dinamarca – BCG-DENMARK-Covid; Estados Unidos – BADAS; e Holanda – BCG-CORONA, NCT04328441; e vários outros. Os estudos ainda estão em andamento e os resultados serão divulgados futuramente.

De maneira semelhante a propostas vacinais anteriores, outra abordagem plausível e sob investigação é o uso da BCG recombinante com fragmentos imunogénicos do vírus SARS-CoV-2 como nova formulação vacinal e com efeitos imunogénicos potencialmente efetivos. O sucesso de recombinações com estruturas de outros patógenos reforça os estímulos às investigações para o uso na profilaxia da Covid-19 com estruturas como a espícula S e proteína do nucleocapsídeo N do SARS-CoV-2 (Gupta, 2020).

Outros detalhes sobre a polêmica do uso terapêutico da BCG para a profilaxia e/ou tratamento de pacientes com Covid-19 podem ser observados nas referências abaixo.

Referências bibliográficas

  • Arts RJW, Moorlag SJCFM, Novakovic B, Li Y, Wang SY, Oosting M, Kumar V, Xavier RJ, Wijmenga C, Joosten LAB, Reusken CBEM, Benn CS, Aaby P, Koopmans MP, Stunnenberg HG, van Crevel R, Netea MG. BCG Vaccination Protects against Experimental Viral Infection in Humans through the Induction of Cytokines Associated with Trained Immunity. Cell Host Microbe. 2018 Jan 10;23(1):89-100.e5.
  • Basak P, Sachdeva N, Dayal D. Can BCG vaccine protect against Covid-19 via trained immunity and tolerogenesis? Bioessays. 2020 Nov 9:e2000200.
  • Charoenlap S, Piromsopa K, Charoenlap C. Potential role of Bacillus Calmette-Guérin (BCG) vaccination in Covid-19 pandemic mortality: Epidemiological and Immunological aspects. Asian Pac J Allergy Immunol. 2020 Sep;38(3):150-161.
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  • Gupta PK. New disease old vaccine: Is recombinant BCG vaccine an answer for Covid-19? Cell Immunol. 2020 Oct;356:104187.
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  • Hensel J, McAndrews KM, McGrail DJ, Dowlatshahi DP, LeBleu VS, Kalluri R. Protection against SARS-CoV-2 by BCG vaccination is not supported by epidemiological analyses. Sci Rep. 2020 Oct 27;10(1):18377.
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  • O’Neill LAJ, Netea MG. BCG-induced trained immunity: can it offer protection against Covid-19? Nat Rev Immunol. 2020 Jun;20(6):335-337.
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  • Yitbarek K, Abraham G, Girma T, Tilahun T, Woldie M. The effect of Bacillus Calmette-Guérin (BCG) vaccination in preventing severe infectious respiratory diseases other than TB: Implications for the Covid-19 pandemic. Vaccine. 2020 Sep 22;38(41):6374-6380.

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