Como abordar a SHU típica?

A Síndrome Hemolítica Urêmica (SHU) secundária ou típica tem como principal gatilho a infecção por Escherichia coli produtora de toxina Shiga.

A Síndrome Hemolítica Urêmica (SHU) encontra-se no escopo das Microangiopatias Trombóticas (MATs) e pode ser classificada em primária, quando relacionada a um defeito regulatório intrínseco no complemento (SHU atípica); ou secundária, quando engatilhada por fatores microbianos (SHU típica). Nesta sinopse, as atenções estarão voltadas para a SHU típica. 

A SHU secundária tem na Escherichia coli produtora de toxina Shiga (STEC) o seu principal agente causador, especialmente o sorotipo O157:H7, embora outros micro-organismos, como o Streptococcus pneumoniae, HIV e H1N1 possam estar implicados.    

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Epidemiologia e fisiopatologia  

A SHU desenvolve-se em 20% das crianças infectadas pela STEC, especialmente na faixa etária abaixo dos 5 anos, tendo como principal veículo a exposição à carne contaminada. O seu pronto reconhecimento e notificação se fazem necessários em virtude da gravidade clínica e risco potencial para surtos entre os contactantes.   

O principal fator de virulência da STEC é justamente a produção da toxina Shiga, que se apresenta com dois subtipos:  

  • Subtipo 1, considerado de baixo potencial patogênico;  
  • Subtipo 2, de alta virulência, considerado como de “alto risco”, especialmente diante da sua expressão isolada. 

A toxina Shiga é constituída por duas subunidades: A (monomérica) e B5 (pentamérica). A subunidade B5 liga-se a um glicoesfingolipídio (Gb3) presente nas membranas celulares eucariotas. Na sequência, a holotoxina (AB5 + Gb3) sofre endocitose e, por trânsito retrógrado, alcança o complexo de Golgi e o retículo endoplasmático.

Nas organelas celulares, é alvo de proteólise, resultando em exposição da subunidade enzimaticamente ativa – A1. A subunidade A1, por sua vez, cliva um resíduo específico de adenina na subunidade 28s do RNA ribossômico 60S, inibindo a síntese proteica por estresse ribotóxico.    

Manifestações clínicas e laboratoriais  

A infecção por STEC gera danos locais na mucosa intestinal e, a partir da translocação, danos sistêmicos, caracterizados por lesão endotelial e agressão da microvasculatura, deflagrando a ativação da via extrínseca da coagulação, agregação plaquetária, formação de microtrombos e liberação de citocinas inflamatórias (IL6, IL8, IL1β e TNFα). Embora o principal órgão-alvo sejam os rins, as repercussões sistêmicas se estendem ao sistema nervoso central (SNC), coração, fígado e pâncreas.  

O período médio de incubação é de três dias, considerado como o intervalo entre a exposição ao micro-organismo e o início da fase diarreica. Entretanto, lembramos que é comum uma fase pré-diarreica, que consiste em dor abdominal, vômitos e febre, sendo a última esperada em metade dos casos. 

A diarreia tem na colite aguda o seu substrato, justificando a alta frequência evacuatória, com média de dez evacuações dolorosas diárias, acompanhadas por tenesmo e, em dois terços dos casos, hematoquezia. A fase diarreica é autolimitada, se restringindo geralmente a sete dias, a partir de quando tende a se instalar a SHU, caracterizada pela tríade:  

  1. Anemia hemolítica microangiopática e não imune. Os microtrombos se formam na microvasculatura e impõem estresse de cisalhamento aos eritrócitos circulantes, que se tornam fragmentados, sob a forma de esquizócitos, causando redução do hematócrito e haptoglobina e aumento dos reticulócitos, desidrogenase láctica (LDH) e bilirrubina indireta. O processo de hemólise intravascular leva à liberação de hemoglobina livre, quelada pela haptoglobina e que, uma vez saturada, não impede a hemoglobinúria. A pesquisa de Coombs direto é caracteristicamente negativa.   
  1. Trombocitopenia, com média de 40.000/mm³, decorre do consumo plaquetário por agregação na microvasculatura. Trata-se de um evento universal e sentinela na evolução da doença. Alterações laboratoriais relacionadas à plaquetopenia incluem o aumento do D-dímero e a redução das frações C3 e C4 do complemento. 
  1. Azotemia. O aumento das escórias nitrogenadas denuncia a lesão de órgão-alvo mais característica da SHU típica. A oligoanúria afeta até 60% dos pacientes, mas raramente se desenvolve após o 10° dia de evolução.

O diagnóstico microbiológico e a definição de risco  

O diagnóstico definitivo se dá por meio da detecção de patógenos bacterianos em amostras de fezes, que devem ser prontamente coletadas, em razão do declínio progressivo de sensibilidade na fase diarreica. Nos casos em que a amostra de fezes não pode ser rapidamente coletada, a alternativa é a coleta do swab retal.  

As metodologias microbiológicas devem primar pela rapidez na identificação dos patógenos de “alto risco” e envolvem três opções principais:   

  • Isolamento do patógeno e definição do sorotipo em meio de cultura (ágar); 
  • Detecção da toxina Shiga por imunoensaios, cuja a sensibilidade é limitada; 
  • Identificação de genes produtores de toxina Shiga por amplificação de ácido nucleico. A genotipagem da toxina é considerada o método mais sensível e preciso na definição do risco, suplantando a definição do sorotipo. 

Caracterizado o grupo de “alto risco” (produtor de toxina Shiga 2) entre os pacientes infectados por STEC, recomenda-se a monitorização clínica e laboratorial diária, até que as plaquetas ascendam em pelo menos 5%.  

Quais parâmetros monitorizar na infecção por STEC de alto risco? 
  • Hemograma com plaquetas;  
  • Esfregaço de sangue periférico; 
  • LDH; 
  • Creatinina; 
  • Ureia; 
  • Eletrólitos. 

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Manejo clínico suportivo  

Ao contrário de outras microangiopatias trombóticas, como a SHU atípica e a púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), o manejo da SHU típica ou secundária é exclusivamente baseado em medidas suportivas, com o cuidado redobrado em se evitar a tentação de condutas iatrogênicas.   

O que não devemos fazer no paciente com SHU típica? 
  • Antibioticoterapia empírica, especialmente nos pacientes imunocompetentes com diarreia sanguinolenta, pois aumenta o risco de desenvolvimento de SHU nos pacientes infectados com STEC.  
  • Tratamentos sintomáticos com opioides e antidiarreicos (loperamida, por exemplo), pelo potencial de agravar a evolução da colite.  
  • AINEs também não são boas opções analgésicas, em decorrência da nefrotoxicidade, agravando a lesão renal já esperada na SHU.   

A expansão volêmica, principalmente na fase diarreica, é recomendada na vigência de desidratação, hemoconcentração e hipovolemia. A hemoconcentração, atenuada pela queda do hematócrito decorrente da hemólise, é um fator de mau prognóstico, associado a risco elevado para a terapia renal substitutiva (TRS), complicações neurológicas e mortalidade. Uma vez indicada a expansão volêmica, recomenda-se cristaloides (SF 0,9% ou Ringer lactato) com dose de ataque de 10 mL/kg em 3 horas, seguido pela hidratação de manutenção por 48 horas.   

A maioria dos pacientes com SHU demanda, em algum momento da evolução, a transfusão de concentrados de hemácias. A transfusão de plaquetas, por sua vez, deve se limitar a sangramentos maiores com repercussão hemodinâmica ou à profilaxia de sangramentos precedendo à punção de acessos venosos centrais.   

A TRS torna-se necessária para a maioria dos pacientes anúricos, estendendo-se habitualmente por duas semanas, quando geralmente há a retomada da diurese espontânea.   

As indicações da TRS não diferem das clássicas: síndrome urêmica, hipervolemia, distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos refratários.   

A modalidade de diálise deve levar em conta as características dos pacientes, experiência da equipe e disponibilidade local de recursos. A diálise peritoneal é segura e com o apelo de dispensar a anticoagulação em um cenário de risco aumentado para sangramentos.

A hemodiálise é preferível quando há necessidade de rápida remoção de fluidos e eletrólitos. Na vigência de instabilidade hemodinâmica ou disfunção multiorgânica, a hemodiálise contínua se sobressai pela melhor tolerância, embora a sua logística demande a permanência em terapia intensiva.   

A ausência de tratamentos específicos eficazes  

Conforme explicado anteriormente, a toxina Shiga do subtipo 2 é a grande mediadora da virulência da STEC. Logo, a neutralização da toxina seria uma estratégia plausível para o manejo da SHU. Entretanto, a toxemia sistêmica é fugaz, gerando os seus danos sob a máxima do “bateu e correu”. Dessa forma, essa modalidade terapêutica tem eficácia limitada.   

A inibição do complemento por meio do anticorpo monoclonal anti-C5 (Eculizumabe), embora altamente eficaz na SHU atípica, somente muito raramente pode mudar desfechos na SHU típica. Portanto, o seu uso deve se limitar aos ensaios clínicos.  

A plasmaférese, fundamental no manejo da PTT ao mediar a correção da disfunção de ADAMTS13, tem evidência extremamente limitada na SHU-STEC, não sendo recomendada atualmente. 

Prognóstico  

A SHU atípica mantém o seu status de doença grave, com mortalidade de 3% entre crianças e 20% entre idosos e adultos de meia idade.  

Os preditores de mau prognóstico incluem os extremos da idade (abaixo dos 5 ou acima dos 75 anos) e sexo feminino; diarreia sanguinolenta, acompanhada por vômitos ou pródromo diarreico curto; atraso na identificação do patógeno; isolamento da toxina Shiga do subtipo 2; hemoconcentração relativa, hiponatremia, hipocalcemia,  hipoalbuminemia e  leucocitose superior a 13.000/mm³; e envolvimento do SNC.   

Em contrapartida, a ascensão das plaquetas a partir do quinto dia de evolução da doença é um fator de bom prognóstico.   

Complicações  

As complicações da SHU incluem as neurológicas, como as convulsões, AVC e coma, geralmente atreladas a um prognóstico ominoso; as cardíacas, presentes em menos de 10% dos casos, entre as quais: isquemia, arritmia, cardiomiopatia e derrame pericárdico. As catástrofes intestinais, como necrose de alça e perfuração, são raras.

A hipervolemia, caracterizada por hipertensão arterial, edema pulmonar e derrames cavitários, pode se desenvolver de forma iatrogênica por expansão volêmica inapropriada ou durante a fase anúrica. Outras complicações descritas incluem lesão hepática hepatocelular e colestática, pancreatite aguda, hiperglicemia, síndrome do desconforto respiratório, hemorragia alveolar e coagulação intravascular disseminada.   

Por fim, uma em cada três crianças acometidas por SHU pode desenvolver doença renal crônica (DRC), embora a evolução para DRC terminal seja rara, devendo-se manter o seguimento regular da taxa de filtração glomerular, proteinúria e pressão arterial.   

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Conclusão e mensagens práticas 

  • A Síndrome Hemolítica Urêmica (SHU) secundária ou típica tem como principal gatilho a infecção por Escherichia coli produtora de toxina Shiga (STEC). 
  • 1 em cada 5 indivíduos infectados pela STEC desenvolve a SHU, cuja mortalidade alcança 3% entre crianças e 20% entre adultos de meia idade e idosos.  
  • O principal fator de virulência da STEC é a produção da toxina Shiga do subtipo 2. A genotipagem da toxina Shiga é, portanto, a ferramenta de maior acurácia na predição do risco.  
  • O tratamento é suportivo, centrado na manutenção da euvolemia, com expansão volêmica reservada aos pacientes desidratados, hemoconcentrados e hipovolêmicos. A transfusão de concentrados de hemácias se faz necessária para a maioria dos pacientes, enquanto a transfusão de plaquetas deve ser reservada para sangramentos maiores com repercussão hemodinâmica e para a profilaxia de sangramento relacionado à punção de acessos venosos profundos.  
  • Medidas iatrogênicas devem ser evitadas, a exemplo do emprego de antibioticoterapia empírica para imunocompetentes com diarreia sanguinolenta, antidiarreicos, opioides e AINEs.  
  • A inibição do complemento e plasmaférese, importantes na SHU primária e púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), respectivamente, não são indicadas no manejo da SHU secundária.
  • Um terço dos indivíduos com SHU típica desenvolve doença renal crônica (DRC) no seguimento clínico, embora a DRC terminal seja um desfecho raro.  

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Freedman SB, van de Kar NCAJ, Tarr PI. Shiga Toxin-Producing Escherichia coli and the Hemolytic-Uremic Syndrome. N Engl J Med. 2023 Oct 12;389(15):1402-1414. DOI: 10.1056/NEJMra2108739. PMID: 37819955.