Pancreatite aguda: qual o papel da abordagem intervencionista?

Deve-se sempre considerar a profilaxia de pancreatite aguda pós-CPRE nos pacientes de alto risco com o emprego de AINE por via retal.

A pancreatite aguda (PA) é uma doença rara, mas com  incidência crescente no Ocidente, atingindo 340 casos por milhão de habitantes ao ano. Trata-se de condição potencialmente catastrófica, levando a óbito 1 a cada 3 pacientes que evoluem com as formas graves.   

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A PA biliar (40%) e a alcoólica (30%) são majoritárias, embora deva-se considerar as etiologias metabólicas (hipercalcemia e hipertrigliceridemia), autoimunes, a exemplo da doença relacionada à IgG4, malignidades pancreáticas e extra-pancreáticas, doenças genéticas (mutações do gene SPINK1 e PRSS-1) e iatrogenias, como as PA fármaco-induzida e pós-CPRE.   

A fisiopatologia da PA reside no colapso da membrana das células acinares pancreáticas, com ativação prematura do tripsinogênio em tripsina a partir da ação da enteropeptidase, deflagrando-se uma reação em cadeia de ativação de proteases. Outros mecanismos atuam em paralelo, desencadeando cascatas inflamatórias, estresse do retículo endoplasmático por aumento do cálcio intracelular e disfunção mitocondrial dos ácinos pancreáticos.

A liberação do fator de transcrição nuclear κB amplifica o processo ao recrutar células inflamatórias. As alterações descritas podem desencadear, além do dano local no tecido pancreático e adjacências, a síndrome de resposta inflamatória sistêmica e disfunções orgânicas múltiplas.  

O diagnóstico da pancreatite aguda é baseado no tripé de dados clínicos (dor em andar superior do abdome, em faixa, irradiada para o dorso e associada a náuseas e vômitos), laboratoriais (aumento de amilase e/ou lipase superior a 3 vezes o limite superior da normalidade) e radiológicos. Enfatizamos que a tomografia computadorizada de abdome (TCA) contrastada deve ser reservada para os casos de dúvidas diagnósticas, além dos indivíduos com PA moderadamente grave ou grave, com sepse ou deterioração clínica após as primeiras 72 horas de evolução.    

Os principais diagnósticos diferenciais a serem considerados são o infarto agudo do miocárdio de parede inferior, pneumonia lobar inferior, perfuração de víscera oca, isquemia mesentérica e doença ulcerosa péptica.   

A classificação da PA mais amplamente utilizada na prática cotidiana é a revisada de Atlanta (2002).  

Classificação revisada de Atlanta (2002) 
Pancreatite aguda  Características 
Leve  Ausência de disfunção orgânica. 

Complicações locais e sistêmicas ausentes.  

Moderadamente grave  Disfunção orgânica transitória (duração inferior a 48h) ou presença de complicações locais ou sistêmicas.  
Grave  Disfunção orgânica persistente por mais de 48h. 

A PA pode ser diferenciada com base na anatomia à TCA contrastada entre as formas edematosa intersticial, quando há realce homogêneo do parênquima pancreático; e necrotizante, na presença de áreas pancreáticas não-captantes de contraste ou caracterização de coleções necróticas peripancreáticas.

A pancreatite necrotizante torna-se infectada em um terço dos casos, e pode ser sugerida pela presença de ar em meio às áreas de necrose pancreática, o que deve ser considerado como gatilho para a punção aspirativa por agulha fina (PAAF).    

As principais complicações locais da PA podem ser sintetizadas conforme expresso na tabela seguinte:  

Complicações locais da Pancreatite Aguda 
Subtipo de PA  Primeiras 4 semanas  Após 4 semanas 
Edematosa  

intersticial 

Coleções fluidas peripancreáticas 

  • Coleções homogêneas, com densidade de fluido, confinadas aos planos fasciais peripancreáticos e sem cápsula definida. 
  • A maioria se resolve em 7 a 10 dias, sendo a taxa de evolução para pseudocistos inferior a 10%. 
Pseudocistos pancreáticos 

  • Coleções redondas ou ovais, encapsuladas, com parede inflamatória bem definida e com densidade de fluido homogênea. 
Necrotizante  Coleções necróticas agudas 

  • Coleções heterogêneas, com densidade não-líquida e sem cápsula definida.  
Necrose encistada 

  • Encapsulada, com parede bem definida, heterogênea, loculada e com densidade não-líquida. 

A abordagem conservadora e suportiva é universal na PA. A ressuscitação volêmica, anteriormente pautada em estratégias agressivas, agora é recomendada de forma moderada. A preferência é pelo emprego do Ringer lactato, 1,5 mL/kg/hora nas primeiras 24-48h, reservando-se bolus de 10 mL/kg para os pacientes hipovolêmicos. Na PA secundária à hipercalcemia, entretanto, o Ringer lactato é contraindicado. Os outros pilares do tratamento incluem a analgesia, mobilização precoce e terapia nutricional, com introdução da dieta o mais precocemente possível, com preferência para a via oral ou enteral, em detrimento da nutrição parenteral.   

As modalidades terapêuticas intervencionistas, em contrapartida, são condutas de exceção, a serem realizadas preferencialmente em hospitais terciários experimentados. As suas principais indicações incluem a refratariedade ao tratamento clínico conservador, evidenciada por disfunções orgânicas persistentes ou quadro infeccioso não-controlado, além da necessidade de manejar complicações locais. Não há espaço para as intervenções invasivas na PA leve, bem como diante de necrose e pseudocistos pancreáticos assintomáticos, independentemente do tamanho, localização ou extensão.   

A necrose pancreática, ainda quando infectada, se não implicar em instabilidade clínica, deve ser tratada primariamente com antibioticoterapia, a exemplo de Meropenem em monoterapia ou da combinação entre Ciprofloxacino ou Cefepime e Metronidazol.

A antibioticoterapia isolada é eficaz em cerca de 40% dos casos, minimizando a demanda por abordagens intervencionistas. Entretanto, uma vez indicada a necrosectomia, essa deve ser realizada somente após transcorridas 4 semanas de evolução.

O racional é permitir o delineamento da zona necrótica, facilitando a sua diferenciação com o tecido pancreático viável e, por consequência, a sua preservação. As evidências atuais, entretanto, têm demonstrado que procedimentos minimamente invasivos podem ser realizados de forma precoce diante de complicações refratárias ao tratamento conservador.   

Tratamentos intervencionistas dedicados à pancreatite aguda 
Aspiração de coleção por agulha fina  Útil na distinção entre necrose estéril e infectada a partir dos dados microbiológicos. 
Drenagem percutânea de coleções   Guiada por ultrassonografia ou tomografia computadorizada, apresenta taxa de resolução entre 23 e 47%. 
Drenagem endoscópica transmural  Realizada pela via transgástrica ou transduodenal, é guiada por ecoendoscopia, valendo-se de stents metálicos autoexpansíveis (SEMS) e stents metálicos com aposição de lúmen (LAMS). 
Necrosectomia endoscópica  Útil na presença de infecção com debris sólidos e espessos, que impliquem em falha da drenagem transmural. 
Drenagem assistida por vídeo  Retroperitoneal para as coleções retrogástricas com extensão à goteira parietocólica esquerda; laparoscópica ou aberta transgástrica para coleções retrogástricas centrais; Laparoscópica transperitoneal para coleções na raiz do mesentério.  
Cirurgia aberta transperitoneal  Último reduto quando houver falha dos outros métodos e impossibilidade de acessar a coleção de outra maneira, bem como síndrome do ducto desconectado em candidatos à pancreatectomia distal. 

A abordagem intervencionista moderna da necrose pancreática é pautada em degraus (step-up), conforme a proposição de Freeny, progredindo das modalidades menos para as mais invasivas. Dessa forma, parte-se da drenagem percutânea ou transmural endoscópica. Nos casos refratários, prossegue-se com a necrosectomia endoscópica direta, reservando-se o desbridamento cirúrgico aberto como medida de resgate.  

Uma terapia adjuvante promissora é a drenagem por paracentese abdominal. Trata-se da implantação de um cateter na cavidade abdominal, viabilizando a drenagem de líquido ascítico inflamatório, com a proposta de atenuar o dano à barreira intestinal. Embora a sua indicação ainda seja imprecisa, as evidências têm apontado para redução da mortalidade geral, tempo de internação em terapia intensiva e hospitalar, além de redução dos custos.   

Além do exposto, a abordagem intervencionista tem seu papel no manejo das fístulas pancreáticas, sangramentos refratários à terapia endovascular e síndrome de compartimento abdominal (SCA). A SCA é tratada por meio da descompressão abdominal com laparostomia (estratégia do abdome aberto), preferencialmente associada à pressão negativa, visando reduzir o tempo de tratamento, a frequência de trocas de curativo e a taxa de reexploração cirúrgica.   

Nos pacientes em risco ou suspeita de SCA, orienta-se a monitorização da pressão intra-abdominal, sendo que valores superiores a 20 mmHg são indicativos de descompressão cirúrgica, especialmente diante de disfunção respiratória e renal.  

A colecistectomia videolaparoscópica (CVL) tem a sua grande indicação na PA biliar, devendo ser realizada na mesma internação nos casos leves. Entretanto, na pancreatite aguda moderadamente grave ou grave, preconiza-se a CVL intervalada, com o objetivo de atenuar o processo inflamatório e estabilizar as coleções fluidas. Um aspecto ainda em discussão é seu papel como profilaxia secundária de PA idiopática, tendo em vista que pelo menos 50% desses casos sejam resultantes de microlitíase.

Um estudo publicado por Räty e colaboradores em 2015 demonstrou que a CVL nesse contexto resulta em identificação de cálculos ou lama biliar em 59% dos casos (23 de 39 pacientes) e reduzir de forma significativa a recidiva de PA. A seleção dos pacientes com PA idiopática para a CVL pode ser refinada pelo emprego da ultrassonografia endoscópica, que, em mãos experientes, alcança a sensibilidade de 90% para a detecção de microlitíase. 

A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), por sua vez, tem na colangite aguda grave e icterícia obstrutiva progressiva as suas principais indicações, e nesses cenários deve ser realizada com prontidão, em um período que não ultrapasse 24 a 48 horas. A CPRE também é útil para os pacientes temporariamente inaptos à CVL, pois a esfincterectomia é capaz de mitigar a recorrência da PA biliar.

Deve-se sempre considerar a profilaxia de PA pós-CPRE nos pacientes de alto risco com o emprego de AINE (por exemplo, indometacina) por via retal. Na inviabilidade de realização de CPRE, como em pós-operatórios de cirurgias bariátricas com reconstrução em Y de Roux, preconiza-se a drenagem trans-hepática percutânea da vesícula biliar.  

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pancreatite aguda

Mensagens finais 

  • A pancreatite aguda (PA) grave implica em óbito de 1 a cada 3 pacientes.  
  • As principais complicações da PA edematosa intersticial são as coleções fluidas peripancreáticas e pseudocistos pancreáticos, enquanto da PA necrotizante são as coleções necróticas agudas e necrose encistada.   
  • As modalidades terapêuticas intervencionistas se restringem ao manejo de complicações locais e refratariedade ao tratamento clínico conservador. 
  • Recomenda-se a abordagem em degraus, partindo dos procedimentos menos invasivos, a exemplo da drenagem percutânea ou transgástrica ecoguiada, para os mais invasivos, como a necrosectomia por cirurgia aberta transperitoneal, mantida como último reduto terapêutico.  

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Alzerwi N. Surgical management of acute pancreatitis: Historical perspectives, challenges, and current management approaches. World J Gastrointest Surg 2023; 15(3): 307-322. DOI: 10.4240/wjgs.v15.i3.307.