ESC 2022: Diretriz sobre cardio-oncologia

Veja os principais pontos da nova diretriz da área, apresentados durante o congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia.

Neste último congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia foi publicada a primeira diretriz de cardio-oncologia desta Sociedade. Esta é uma área relativamente nova dentro da cardiologia e com evidências ainda limitadas, sendo que essa diretriz foi realizada em grande parte com base em consenso de especialistas. Veja a seguir os principais pontos apresentados.

Leia mais: Confira a cobertura completa do congresso da European Society of Cardiology

esc 2022

Papel dos serviços de cardio-oncologia

Os objetivos da cardio-oncologia são permitir que os pacientes com câncer recebam o tratamento adequado de forma segura, com redução do risco de toxicidade, sejam tratados em relação aos outros fatores de risco cardiovasculares e sejam vigiados no intuito de se detectar e evitar complicações relacionadas ao tratamento, tanto na fase aguda quanto no seguimento de longo prazo.

O risco de desenvolvimento de toxicidade cardiovascular depende das características de base do paciente e das mudanças que ocorrem em decorrência da exposição ao tratamento ao longo do tempo e esse risco é dividido em baixo, moderado, alto e muito alto. O tipo de toxicidade vai depender do tipo de neoplasia e de tratamento.

Como definir o risco de toxicidade cardiovascular pré-tratamento?

A ferramenta de avaliação sugerida pela diretriz é o escore do HFA-ICOS (Heart Failure Association–International Cardio-Oncology Society baseline cardiovascular toxicity risk stratification), que leva em conta as características clínicas, eletrocardiográficas, toxicidade ocorrida previamente, alterações em exames de imagem e biomarcadores (troponina, peptídeos natriuréticos), idade, presença de fatores de risco tradicionais e relacionados a estilo de vida. Essas características são avaliadas de acordo com o tratamento que será recebido e a partir daí estima-se o risco.

Caso o paciente seja classificado como tendo risco alto ou muito alto, deve ser encaminhado ao cardiologista com avaliação do risco e benefício do tratamento e adoção de estratégias cardioprotetoras. Caso o risco seja moderado, pode ser acompanhado mais de perto pelo oncologista e encaminhado ao cardiologista caso haja desenvolvimento de toxicidade. Pacientes de risco baixo podem ser acompanhados pelo oncologista de forma habitual e encaminhados ao cardiologista se desenvolverem toxicidade.

Além da classificação de risco foram descritas as definições de cardiotoxicidade:

  • Disfunção cardíaca sintomática relacionada ao tratamento oncológico: ocorrência de sintomas de insuficiência cardíaca (IC). Dividida em leve (sintomas leves, sem necessidade de ajuste terapêutico), moderada (com necessidade de diuréticos e medicações para IC), grave (com necessidade de internação) ou muito grave (com necessidade de suporte inotrópico, mecânico ou avaliação para transplante).
  • Disfunção cardíaca assintomática relacionada ao tratamento oncológico: detectada por exames complementares e dividida em leve (fração de ejeção (FE) maior que 50%, porém queda do strain global longitudinal (SGL) > 15% do basal e/ou aumento dos biomarcadores), moderada (queda ≥ 10% da FE para valor entre 40 e 49% ou queda < 10% para valor entre 40 e 49% associado a queda > 15% no SGL de base ou aumento de biomarcadores) e grave (queda da FE para valor menor que 40%).
  • Miocardite: o diagnóstico pode ser feito de forma invasiva, com biópsia, ou de forma clínica, baseado em alterações na troponina e critérios maiores ou menores de acordo com alterações clínicas e em exames de imagem. Sua gravidade é dividida em fulminante, não fulminante e refratária a corticosteróides e a recuperação em completa ou em recuperação.
  • Toxicidade vascular: também dividida em assintomática (doença aterosclerótica coronária, carotídea, arterial, periférica, trombose arterial ou venosa e vasoreatividade periférica, coronária epicárdica ou microvascular) ou sintomática (acidente vascular cerebral (AVC), síndrome coronariana aguda (SCA), doença coronária estável, doença arterial periférica, angina vasoespástica, angina microvascular, fenômeno de Raynauld).
  • Hipertensão arterial: os níveis de corte são os mesmos usados habitualmente. Deve ser tratada se PAS ≥ 140 mmHg ou PAD ≥ 90 mmHg ou se PAS ≥ 130 ou PAD ≥ 80 mmHg em pacientes de alto risco cardiovascular. O tratamento oncológico deve ser suspenso de PAS ≥ 180 ou PAS ≥ 110 mmHg.
  • Arritmias cardíacas: QT longo (quando maior que 500ms), bradicardias, taquicardia supraventricular, arritmias ventriculares e fibrilação atrial (FA) tem as definições semelhantes às da cardiologia geral.

Exames complementares

A estratificação de risco baseada em biomarcadores (troponina e BNP ou NTpró-BNP) ainda é limitada. Alguns estudos mostraram aumento de risco quando esses marcadores estão aumentados, porém a recomendação atual é realizar a sua dosagem pré tratamento se o paciente tiver risco de disfunção cardíaca, com possível necessidade de coleta desses marcadores ao longo do tratamento.

Os exames de imagem ajudam a detectar doença subclínica e um exame de base auxilia como referência para os exames realizados ao longo do tratamento. O exame de escolha é o ecocardiograma transtorácico (ETT), de preferência o 3D, porém se não disponível pode-se utilizar o ETT 2D com medida da FE pelo método de Simpson. Esse exame, com a medida do SGL é recomendado para todo paciente com risco alto e muito alto.
Medidas de prevenção

Para pacientes sem DCV estabelecida (prevenção primária) recomenda-se mudanças no estilo de vida, com cessação de tabagismo, restrição do consumo de álcool, realização de atividade física.

Em relação a medicamentos específicos, pacientes com alto e muito alto risco que receberão antraciclinas podem receber desrazoxane, também indicado caso os pacientes tenham risco menor porém já tenham recebido dose cumulativa alta de antraciclinas. A doxorrubicina lipossomal também pode ser utilizada em pacientes de risco alto ou muito alto, com redução do risco de cardiotoxicidade. Essas são recomendações IIa.

Além disso, IECA ou BRA e beta bloqueadores (BB) podem ser considerados para pacientes de alto ou muito alto risco que receberão antraciclinas e/ou anti-HER2 ou pacientes que receberão outros tratamentos que podem desencadear IC. Pacientes de alto ou muito alto risco também podem receber estatinas. Estas são todas recomendações IIa.

Para cada classe de medicação utilizada como tratamento oncológico há recomendações específicas em relação a quais exames realizar pré-tratamento e em que momento repeti-los. Estas recomendações estão descritas de forma detalhada na diretriz.

Diagnóstico e tratamento de toxicidade aguda e subaguda durante o tratamento do câncer

Pacientes com evidência de cardiotoxicidade devem ser avaliados por cardiologista e a decisão em relação ao tratamento deve ser baseada em fatores relacionados ao câncer e relacionados ao sistema cardiovascular, prognóstico oncológico, possibilidade de tratamento alternativo do câncer, reações a medicações, interação medicamentosa e preferências do paciente.

Disfunção cardiovascular:

Geralmente é relacionada ao uso de antraciclinas e anti-HER2, frequentemente utilizados para tratamento de câncer de mama.

Em relação às antraciclinas, a suspensão definitiva do tratamento é recomendada sempre que houver disfunção grave sintomática e a suspensão temporária quando houver disfunção sintomática moderada ou disfunção assintomática moderada ou grave. Os pacientes devem receber tratamento para IC: IECA, BRA ou INRA, BB, iSGLT2 e antagonista mineralocorticóide (recomendação Ib).

Se houver recuperação da função ventricular com o tratamento pode-se considerar retornar o tratamento nas formas sintomáticas leve ou moderada e assintomáticas moderada ou grave. Também pode-se considerar as estratégias de reduzir a dose da antraciclina, trocar para antraciclinas lipossomal ou realizar pré-tratamento com dexrazoxane. Todas essas recomendações, com exceção da apontada acima são Ia. Pacientes com forma assintomática leve podem receber IECA ou BRA e/ou BB e manter o tratamento (recomendação IIa).

Em relação ao anti-HER2, se houver disfunção sintomática ou assintomática grave (FE < 40%), recomenda-se tratamento para IC. Interrupção temporária é recomendada para casos sintomáticos moderados ou graves ou assintomáticos graves. Em casos assintomáticos com disfunção moderada o tratamento pode ser continuado e é recomendado tratamento cardioprotetor (IECA ou BRA e BB). Em pacientes com disfunção leve assintomática, o tratamento pode ser continuado e o tratamento cardioprotetor considerado.

Miocardite relacionada a inibidores de check-point:

É uma complicação grave relacionada a este tipo de medicação e tem alta taxa de mortalidade, sendo mais comum nas primeiras 12 semanas de tratamento. O diagnóstico é baseado em sintomas, aumento de troponina e alterações no eletrocardiograma e confirmado por achados de imagem. O tratamento deve ser iniciado rapidamente nos pacientes instáveis hemodinamicamente, com altas doses de metilprednisolona, até a confirmação diagnóstica. O tratamento deve ser interrompido em todos os casos e após os exames define-se se deve retornar, a depender do diagnóstico confirmado ou suspeito.

Síndrome de Takotsubo:

Esta doença tem prevalência aumentada em pacientes com câncer, pela própria neoplasia, uso de medicações e o estresse relacionado ao diagnóstico, investigação e tratamento. Como na população em geral, o paciente necessita de cateterismo e caso contra-indicado em decorrência de neoplasia avançada ou plaquetopenia por exemplo, recomenda-se a realização de angioTC de coronárias. Exame de imagem deve ser feito o mais precoce possível, já que a alteração é transitória. Recomenda-se a suspensão da medicação relacionada ao Takotsubo e evitar medicações que prolonguem o QT.

Síndrome coronariana aguda:

Pacientes com câncer tem risco aumentado de SCA e caso apresentem este quadro, o tratamento pode ser um desafio, já que estes pacientes tem maior fragilidade, maior risco de sangramento e plaquetopenia, além de maior risco trombótico. O tratamento do câncer deve ser interrompido e o paciente deve ser avaliado de forma individual, em relação ao status e prognóstico oncológico e as preferencias do paciente em relação a tratamento invasivo.

O paciente deve permanecer monitorizado e com tratamento anti-isquêmico e anti-trombótico, se não houver contra-indicações. Caso o paciente tenha expectativa de vida maior que seis meses, há benefício de angioplastia, se indicada, e os stents farmacológicos de terceira geração são os recomendados. Em relação a dupla antiagregação, prefere-se aspirina e clopidogrel pelo menor tempo possível (1 a 3 meses). Em caso de necessidade de anticoagulação, recomenda-se um NOAC em associação a clopidogrel.

Cirurgia pode ser considerada se o paciente tiver expectativa de vida maior que 12 meses. Se a isquemia foi atribuída ao quimioterápico, recomenda-se discutir possível mudança no tratamento. Quando o evento não teve associação com medicação, pode-se voltar o tratamento oncológico assim que o paciente tiver sido tratado da coronária.

Caso o paciente apresente doença coronária crônica, com sintomas de angina estável, ao longo do tratamento, deve ser investigado e tratado de acordo com as diretrizes específicas.

Fibrilação atrial:

Todos os tipos de câncer aumentam o risco de ocorrência de FA, além de poder estar relacionada a terapias específicas ou na presença de substrato pré existente, principalmente em pacientes mais idosos. A presença desta arritmia aumenta tanto o risco de eventos tromboembólicos quanto de evolução com IC, além de gerar aumento de mortalidade e sangramento maior.

O risco de eventos tromboembólicos deve ser avaliado de acordo com o CHA2DS2VASc e o intuito de utilizar este escore é identificar pacientes de baixo risco, nos quais a anticoagulação pode ser evitada. Porém, esse escore parece subestimar o risco de eventos na população com câncer.

QT longo:

Geralmente está relacionada a uso de medicações e caso o paciente evolua com este achado no ECG essas medicações devem ser evitadas, assim como outras medicações não necessariamente relacionadas ao tratamento do câncer que podem alterar o intervalo QT.

Hipertensão:

A hipertensão costuma ser multifatorial e os limiares de tratamento variam a depender do prognóstico oncológico. No geral, trata-se todos os pacientes com PAS ≥ 160 mmHg e PAD ≥ 100mHg. As medicações de escolha são IECA ou BRA, seguido de bloqueador de canal de cálcio.

Após o término do tratamento do câncer o paciente deve ser seguido por mais 12 meses e o momento da avaliação e quais exames serão necessários pós término do tratamento vai depender do risco do paciente ao término do tratamento.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • LYON, Alexander R et. al. 2022 ESC Guidelines on cardio-oncology developed in collaboration with the European Hematology Association (EHA), the European Society for Therapeutic Radiology and Oncology (ESTRO) and the International Cardio-Oncology Society (IC-OS): Developed by the task force on cardio-oncology of the European Society of Cardiology (ESC). European Heart Journal, ehac244, August 26 2022, https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehac244.

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