Influência de infecção prévia de zika em episódios de dengue

Estudo usou amostras de sangue de indivíduos com suspeita de dengue para avaliar a influência de infecção prévia por zika

A emergência de diversas arboviroses nos últimos anos vem se configurando uma causa de preocupação de saúde pública mundialmente. Doenças como zika, dengue e chikungunya podem ser transmitidas pelos mesmos vetores e causar epidemias concomitantes, como já ocorrido no Brasil.

Apesar de ser, em sua maioria, uma doença autolimitada, indivíduos com dengue podem evoluir com complicações potencialmente fatais, tais como sangramentos ou choque. Sabe-se que o risco de desenvolvimento de doença grave é maior em um segundo episódio de dengue. Tal fenômeno é associado ao fato de que anticorpos secundários a uma primeira infecção podem se ligar ao DENV de outro sorotipo em uma segunda infecção. Esses anticorpos não são capazes de neutralizar o vírus responsável pela infecção aguda, mas sua ligação favorece a entrada do complexo vírus/anticorpo em monócitos circulantes, levando à exacerbação de respostas inflamatórias.

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Além de compartilharem o mesmo vetor — sendo o Aedes aegypti o de principal importância epidemiológica —, os vírus de dengue (DENV) e zika (ZIKV) apresentam certa similaridade genética (aproximadamente 58%) e geram respostas sorológicas semelhantes, o que leva ao questionamento da possibilidade de reação cruzada entre os anticorpos produzidos a cada uma dessas infecções e se imunidade prévia para zika poderia, de alguma forma, impactar a resposta imune e o desfecho clínico de episódios subsequentes de dengue.

Embora estudos in vitro tenham demonstrado exacerbação de infecção por zika na presença de anticorpos contra dengue, estudos in vivo apresentaram resultados inconclusivos. Um estudo conduzido em São José do Rio Preto (SP) procurou avaliar a influência de infecção prévia por ZIKV em parâmetros clínicos, virológicos e imunológicos secundários a infecções subsequentes por DENV.

Influência de infecção prévia de Zika em episódios de dengue

Materiais e métodos

O estudo avaliou amostras de sangue de indivíduos com suspeita de dengue, coletadas após avaliação médica inicial. As amostras foram submetidas a testes de DENV RT-PCR e, caso negativo, à pesquisa do antígeno NS1. As amostras negativas para ambos os testes foram excluídas das análises subsequentes. Amostras com pelo menos um dos testes positivo foram consideradas como sendo de casos confirmados.

De acordo com as informações obtidas por meio de prontuários eletrônicos e das fichas de notificação individual (SINAN), os casos foram classificados como dengue sem sinais de alarme, dengue com sinais de alarme (presença de pelo menos um dos seguintes: dor abdominal, vômitos persistentes, sangramento de mucosas, extravasamento capilar, letargia, hepatomegalia > 2 cm, ou aumento de hematócrito com queda súbita de plaquetas) ou dengue grave (presença de perda plasmática grave, caracterizada por choque e/ou congestão pulmonar, sangramento intenso, disfunção orgânica grave com transaminases > 1.000 UI/dL, alteração do nível de consciência e/ou disfunção miocárdica ou de outros órgãos). As amostras referentes a esses indivíduos foram testadas para anticorpos IgG (ELISA) contra DENV e ZIKV para avaliar exposição prévia.

Resultados

Entre dezembro de 2018 e novembro de 2019, foram obtidas 2.990 amostras de indivíduos com suspeita de dengue, das quais 1.490 apresentaram resultado positivo para DENV RT-PCR ou NS1. O principal sorotipo detectado foi DENV2 (99,8%).

Dessas amostras, 1.043 apresentavam informações clínicas que permitiram classificar os casos de acordo com a gravidade e foram submetidas à avaliação de sorologia prévia para Zika e dengue pelo método de ELISA. A maior parte dos casos ocorreu no primeiro trimestre de 2019, o que estava de acordo com a sazonalidade da doença. As amostras foram classificadas em quatro grupos: sem infecção prévia por DENV e ZIKV (DV -/ZV -; n = 203 ou 19,46%), DV -/ZV + (n = 49 ou 4,69%), DV +/ZV – (n = 627 ou 60,11%) e DV +/ZV + (n = 164 ou 15,72%).

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A maior parte dos casos ocorreu em mulheres (54,3%) e a mediana de idade foi de 40,75 anos. Os sintomas mais frequentes foram: febre (84,0%), mialgia (82,6%) e cefaleia (74,2%). Os sinais de alarme mais comuns foram dor abdominal (40,2%), hemoconcentração (39,9%) e sangramento (23,1%). Já em relação a sinais de gravidade, comprometimento de sistema nervoso central (1,6%), sinais de choque (1,6%) e sangramento grave (1,2%). A classificação clínica demonstrou 820 (78,6%) casos de dengue sem sinais de alarme, 212 (20,3%) casos de dengue com sinais de alarme e 11 (1,1%) casos de dengue grave. No total, 30,2% dos pacientes precisaram de internação hospitalar e a taxa de mortalidade foi de 0,2 mortes/100 casos.

Para avaliação do impacto de infecção prévia por ZIKV no curso clínico de infecção por DENV, foram considerado os grupos classificados como DV -/ZV -, DV +/ZV – e DV -/ZV +, o que corresponde aos dados de 879 pacientes. Os casos em que ambos os testes sorológicos foram positivos foram excluídos pela dificuldade em se estabelecer a especificidade da infecção prévia. Não houve diferença entre os grupos em relação ao gênero ou idade. Leucopenia foi mais frequente no grupo DV -/ZV + – embora não tenha havido diferença na mediana de contagem de leucócitos — e o grupo DV -/ZV + apresentou menor mediana de plaquetas — mas sem diferença entre os grupos na frequência de trombocitopenia.

Sangramento grave foi mais frequente no grupo DV -/ZV + (p = 0,036; 2/31 (6,45%) vs. 0% no grupo DV -/ZV -, que foi considerado como grupo controle). Nesse grupo, também houve maior ocorrência de casos de dengue grave e de dengue com sinais de alarme. A taxa de hospitalização foi de 68% no grupo DV -/ZV +, em comparação com 39% no grupo DV -/ZV – e 24% no grupo DV +/ZV -. A diferença de tempo entre o início de sintomas e admissão hospitalar foi menor no grupo DV +/ZV -, mas não houve diferença estatística entre os grupos no tempo de hospitalização. Não houve diferença estatística entre os grupos em relação ao desfecho clínico final de óbito ou recuperação.

Na análise por regressão logística, infecção prévia por Zika se mostrou associada a maior risco de desenvolvimento de dengue com sinais de alarme e de dengue grave (OR = 2,343; IC 95% = 1,239 – 4429) e de hospitalização (OR = 3,390; IC 95% = 1,594 – 7209) em comparação ao grupo controle. Além disso, idade avançada (> 59 anos) esteve associada a maior risco de formas graves (OR = 2,12; IC 95% = 1,702–2,641) e de hospitalização (OR = 2,202; IC 95% = 1,729–2,806). Sexo masculino esteve associado a maior risco de hospitalização (OR = 1,246; IC 95% = 1,045–1,484). Entretanto, essa última associação não persistiu na análise multivariada.

Os títulos virais foram semelhantes entre os grupos DV -/ZV + e DV -/ZV -, mas mais elevados no grupo DV +/ZV – em comparação com o grupo DV -/ZV -. Infecção prévia por DENV esteve associada a maiores concentrações de IL-17A e IL-1β, mas menores concentrações de EGF e IL-8 comparada com indivíduos DV -. Os indivíduos DV -/ZV + apresentaram perfil de citocinas semelhantes aos DV -/ZV -, exceto pelos níveis de IL-10 e IL-17A, que foram mais altos nos primeiros.

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Mensagens práticas

Nesse estudo, infecção prévia por Zika pareceu estar associada ao desenvolvimento de formas mais graves de dengue e maior risco de hospitalização pela doença.

Os mecanismos pelos quais essa interação ocorreria não estão claros, mas parecem diferir do processo mediado por anticorpos não neutralizantes observado com infecções prévias por dengue.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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