Linfoma de Burkitt em adultos: uma revisão

O linfoma de Burkitt foi inicialmente descrito em 1958, pelo cirurgião irlandês Denis P. Burkitt.

Burkiit acreditava tratar-se de um sarcoma com predileção por acometimento de mandíbula e órbita com metástases extranodais para adrenais, rins, fígado, tireoide, pâncreas, estômago e ovário. Mais tarde, o aspecto histológico do Linfoma de Burkitt foi descrito como semelhante ao de outros linfomas não hodgkin, marcado por linfócitos B clonais maduros e com frequente apresentação clínica na forma de massas intrabdominais.

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Michael Epstein e Yvonne Barr, alguns anos após, descreveram a epidemiologia do subtipo endêmico do Linfoma de Burkitt, acometendo regiões da África Equatorial e com intrínseca relação com infecções pelo Epstein-Barr vírus (posteriormente levando o nome dos infectologistas conforme podemos ver).

Linfoma de Burkitt em adultos uma revisão

Variantes clínicas e epidemiológicas

Atualmente são descritos três principais subtipos de linfoma de Burkitt, que compartilham características histológicas e imunofenotípicas e se diferenciam pela apresentação clínica e características epidemiológicas. Ao diagnóstico, os pacientes costumam apresentar sintomas B e dosagem de LDH muito elevada.

  • Subtipo endêmico: geralmente áreas com endemia de malária por P. falciparum. Acomete mais crianças. Acometimento clássico de mandíbula e/ou órbita, podendo se apresentar como massas intrabdominais. O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) se dá em menos de 10% dos casos. Virtualmente todos os casos estão relacionados ao EBV.
  • Subtipo esporádico: apresenta três faixas etárias de maior incidência — por volta dos 10 anos, 40 anos e acima dos 75 anos. Predileção pelo sexo masculino e apresentação mais comum na forma de massas abdominais acometendo a região ileocecal. Envolvimento do SNC em 20% dos casos e envolvimento da medula óssea (MO) em 35% dos casos. A associação com EBV é descrita em 20-30% dos pacientes.
  • Associado à imunossupressão: essa forma de apresentação é classicamente associada aos pacientes portadores do vírus do HIV com contagem de CD4 normal. Acomete em geral pacientes com 40-45 anos de idade. Envolvimento da MO e do trato gastrointestinal (TGI). Acometimento do SNC entre 20-30% dos casos e associação com EBV em 25-40% dos pacientes.

Histopatologia, imunofenótipo e características moleculares

Na suspeita de linfoma de Burkitt, a arquitetura do linfonodo, as características imunofenotípicas e moleculares das células devem ser analisadas. A biópsia da massa deve ser excisional se possível, não bastando adquirir material através de punção por agulha fina.

  • Histopatologia: os espécimes apresentam infiltração linfocitária importante com núcleos arredondados de tamanho médio, nucléolo evidente, citoplasma marcadamente basofílico com vacúolos e múltiplas figuras mitóticas. Macrófagos que fagocitaram debris celulares dão o toque final para a arquitetura que é classicamente descrita como “céu estrelado”(starry sky). As alterações são observadas nos centros germinativos.
  • Imunohistoquímica: marcadores de linfócitos maduros são clássicos como PAX5, CD79A, CD19, CD20, CD10 e BCL-6. BCL-2 com marcação forte não é comum, o que distingue esta forma de outros linfomas B agressivos. O Ki-67 é próximo a 100%. CD5 e TdT são negativos.
  • Molecular: a grande alteração que marca o Linfoma de Burkitt é a translocação (8;14), que justapõe o locci das imunoglobulinas no cromossomo 14 e o oncogene MYC no cromossomo 18. Dessa forma, a translocação do MYC é a grande característica molecular da doença (80% dos casos); t(8;2) ou t(8;22) correspondem juntos aos outros 20%. Translocações do MYC podem estar presentes em outros linfomas B agressivos. O Linfoma Burkitt-like é descrito como apresentando aberrações do 11q (deve ser abordado como linfoma difuso de grandes células b). Outras alterações genéticas estão associadas à linfomagênese no Burkitt, sendo as mais importantes delas as mutações do TP53 e as mutações na via de sinalização do PI3K.

Estadiamento, estratificação de risco e tratamento

A abordagem inicial requer, além da biópsia do linfonodo/tumoração com avaliação imunohistoquímica e molecular, mielograma, biópsia de medula óssea e punção lombar para avaliação liquórica (invasão de SNC – se possível, realizar imunofenotipagem de MO e de líquor). Sorologias para HIV, Hepatites B e C, EBV e exames de imagem (TC ou RNM) fazem parte da investigação e estratificação.

Alguns estudos têm demonstrado que a resposta terapêutica pode ser afetada pela detecção ou não da carga genética viral associada ao linfoma. Pacientes com diagnóstico de linfoma de Burkitt e EBV negativo tendem a ter uma doença menos quimiorresponsiva provavelmente por ativação de Ciclina D3 e inativação do p53, enquanto pacientes EBV positivo tendem a ter maior carga mutacional e, apesar disso, melhor resposta terapêutica.

Tratamento adaptado ao risco e estadiamento

Neste artigo iremos nos restringir à abordagem do linfoma de Burkitt no adulto, sendo essa a área em que mais atuo.

O estadiamento de Ann-Arbor é classicamente utilizado mesmo que não tenha sido desenvolvido para este fim. A estratificação de risco segue o The Burkitt Lymphoma International Prognostic Index (BL-IPI), publicado por Olszewski e colaboradores (segue tabela adaptada).

Estratificação de risco
Fatores de Risco
Envolvimento de SNC
LDH > 3x limite superior da normalidade
ECOG performance-status ≥2
Idade ≥ 40 anos
Categoria de Risco
Risco baixo: sem fatores de risco
Risco intermediário: 1 fator de risco
Risco alto: ≥ 2 fatores de risco

*Adaptado de Olszewski et al. 2021.

De maneira geral, o tratamento consiste na utilização de quimioterapia dose-intensiva, com Rituximab no D1 isoladamente ou no D1 e D5 dos ciclos. Pacientes com estadiamento precoce e baixa pontuação na estratificação de risco e sem envolvimento do SNC recebem menos ciclos de quimioterapia e profilaxia com metotrexato e citarabina intratecais nos inícios dos ciclos.

Pacientes com estadiamento avançado e/ou estratificação de alto risco devem receber mais doses de quimioterapia. Caso haja envolvimento de SNC, os pacientes devem receber quimioterapia intratecal 2x por ciclo até clearance do líquor ou devem ter associados ciclos com altas doses de metotrexato ao tratamento quimioterápico padrão.

Recentemente, nos pacientes adultos, foi publicado um estudo prospectivo e multicêntrico que demonstrou não inferioridade do R-DA-EPOCH quando comparado ao CODOX-M associado à Rituximab em termos de eficácia. No entanto, o primeiro regime citado apresentou menor toxicidade associada à quimioterapia, sendo então o esquema de eleição.

Abaixo, uma tabela que resume as recomendações do artigo conforme estratificação nos adultos.

Proposta de tratamento adaptado ao risco
Baixo Risco

–        Estadio I ou II com LDH normal

–        BL-IPI 0 ou 1 com pontuação apenas pela idade

–        Sem envolvimento do SNC

R-DA-EPOCH x 3 ciclos sem profilaxia para SNC

Ou

CODOX-M modificado associado a Rituximab por 3 ciclos

Risco Intermediário

–        BL-IPI 1, 2 ou 3 sem envolvimento de SNC

R-DA-EPOCH x 6 ciclos com profilaxia para SNC

Ou

Quimioterapia dose-intensiva associada a Rituximab (podendo ser CODOX-M 3 ciclos intercalado com IVAC 3 ciclos); Esquema deve conter Metotrexato e Citarabina em altas doses

Alto Risco

–        Envolvimento de SNC

Quimioterapia dose-intensiva associada a Rituximab (podendo ser CODOX-M 3 ciclos intercalado com IVAC 3 ciclos); Esquema deve conter Metotrexato e Citarabina em altas doses

Ou

R-DA-EPOCH x 6 ciclos com quimioterapia intratecal em regime intensivo (2 aplicações por ciclo de 21-28 dias até clearance do líquor)

*Adaptado de Roschewski M, Staudt LM, Wilson WH. 2022.

Recados para a prática clínica

O diagnóstico de linfoma de Burkitt consiste em uma urgência médica, e o tratamento de primeira linha ou pré-fase com corticoides em altas doses, aliado ao tratamento de suporte para síndrome de lise tumoral, transfusão de hemocomponentes, dentre outros deve ser iniciado assim que possível. A evolução da doença pode ser rápida e catastrófica se medidas não forem tomadas.

A lição que fica é: estratificar de acordo para tentar um tratamento curativo baseado em quimioterapia de alta dose com penetração de SNC em primeira linha. Massa bulky (≥ 7 cm diâmetro) e acometimento mediastinal geralmente são indicações de profilaxia de sistema nervoso central.

Saiba mais: Linfoma Não-Hodgkin: entenda mais sobre esse grupo de neoplasias linfoproliferativas

Os pacientes recaídos e refratários possuem um péssimo prognóstico e devem ser resgatados com regimes de quimioterapia dose-intensificados e encaminhados para transplante de medula óssea autólogo ou alogênico se houver doados, com poucos trabalhos fornecendo grau de evidência forte para benefício. Esses pacientes são jovens e deve ser balanceado eficácia versus toxicidade dos esquemas, principalmente daqueles regimes habitualmente utilizados para pacientes pediátricos com contexto clínico semelhante (CODOX-M-IVAC, BFM, entre outros).

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Roschewski M, Staudt LM, Wilson WH. Burkitt's Lymphoma. N Engl J Med. 2022;387(12):1111-1122. DOI: 10.1056/NEJMra2025746
  • Olszewski AJ, Jakobsen LH, Collins GP, et al. Burkitt lymphoma international prognostic index. J Clin Oncol. 2021;39: 1129-38. DOI: 10.1200/JCO.20.03288