O que profissionais de saúde têm a ver com os ataques nas escolas

Para legitimarmos as nossas práticas de cuidado e saúde, precisamos estar falando da liberdade para uma vida diversa.

Frequentemente, quando estamos diante de impasses sociais importantes, o campo da saúde, majoritariamente a saúde mental, é convocada a fornecer respostas individualizantes que atenuem o desconforto com as situações. Dos policiais que afirmaram que o agressor de Blumenau estava em “surto psicótico”, aos comentários eugenistas da suposta psicanalista que “analisou as características psicológicas do infrator a partir de uma foto”, exemplos não faltam.  

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Esse movimento é extremamente pernicioso ao debate que se estabelece no seio da sociedade ao buscar negar a multiplicidade de fatores subjacentes à produção e à disseminação da violência no convívio social. Os ataques às escolas não se dão exclusivamente pelo elevado impacto midiático que possuem. Elas são os alvos por tudo que simbolizam: a resposta social à barbárie, um espaço diverso e de partilha cultural. 

Dito isso, o que teríamos nós, então, profissionais da saúde, a ver com a mobilização desses jovens por discursos de ódio? 

A adolescência envolve intensas mudanças em um processo de desenvolvimento físico, psicológico e social. Nesse momento de fragilidade emocional, há uma busca de elementos que forneçam um senso de identidade e comunidade, que são encontrados na partilha da vida comum. A desagregação social produzida pela intensificação de discursos de ódio a grupos minoritários, como machismo, racismo, LGBTQIAPN+fobia e capacitismo, estimulando a desumanização destes grupos vistos como indignos de partilharem o seio social, solapa as bases de uma vida comum continente aos seus jovens membros.  

Como aponta a psicanalista e doutora em Educação Ilana Katz, que integra a rede nacional de pesquisas em saúde mental de crianças e adolescentes, em entrevista para o Estadão: “Quando as angústias, incertezas, dores, tristezas e frustrações ocorrem sem sustentação coletiva de vida partilhada, há uma quebra na experiência humana, facilitando a captura exercida por discursos do ódio que defendem a destruição de pessoas e instituições.”  

Além disso, alguns fatores psicológicos em adolescentes que apresentam vulnerabilidade à exposição a certos grupos são apontados por Lisiane Welter (1) e autores, como “problemas com autoestima, ideias persecutórias ou paranóides, traços antissociais, obsessão e traços rígidos, narcisismo e traços de grandiosidade, senso de direito (justiça), incapacidade de assumir as responsabilidades externas, sentimento de rejeição ao mundo, ruminação de humilhações passadas, fantasias sobre vinganças violentas, sentimento constante de abandono e rejeição, sentimentos de não serem compreendidos ou escutados, raiva descontrolada ou episódios intensos de apatia emocional.”  

Nós, profissionais da saúde, não temos somente uma função curativa ou reparativa quando patologias estão instaladas. É nosso papel fornecermos orientações e informações para pais e responsáveis para identificar alterações comportamentais e insistirmos na necessidade de supervisão quanto ao consumo de mídias digitais por crianças e adolescentes.  

Como ressaltado recentemente pelo relatório sobre os atentados às escolas, produzido por inúmeros especialistas da educação, “os ataques em escolas praticados por alunos e ex-alunos estão usualmente associados ao bullying e situações prolongadas de exposição a processos violentos, incluindo negligência familiar, autoritarismo parental e conteúdo disseminado em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagem”. Nessas situações, a identificação precoce dos casos de sofrimento e seu endereçamento para atuação de assistentes sociais, psiquiatras e psicólogos faz-se imprescindível.  

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Para além disso, somos convocados, juntamente com profissionais da educação e da assistência social, a pensar ações de cuidado para as comunidades escolares que viveram situações de violência. O potencial traumático de curto e longo prazo da vivência de um episódio de ataque não deve ser desprezado. 

Quando nós mobilizarmos a ideia de perda de liberdade, defendida pelo psiquiatra francês Henry Ey, para legitimarmos as nossas práticas de cuidado e saúde, principalmente em saúde mental, precisamos estar falando da liberdade para uma vida diversa. É nosso dever em nossas ações de cuidado e assistência promover o acolhimento, a reflexão, o respeito ao outro e a solidariedade.  

É importante, ainda, entendermos que o enfrentamento da questão passa necessariamente por outras medidas, como garantia do direito à vida digna, controle público das plataformas digitais, desarmamento da população e investimento nos dispositivos públicos de educação, saúde e assistência social. 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Cafardo, R. [Internet]. Estadão [acesso em abr 2023]. Ataque a escolas: pânico e deixar de ir à aula não vão resolver problema . Disponível em <https://www.estadao.com.br/educacao/ataque-a-escolas-panico-e-deixar-de-ir-a-escola-nao-vao-resolver-problema>. 
  • Machado, A. M., Fonseca, P. F. [Internet]. Portal de Divulgação Científica do IPUSP [acesso em abr 2023]. Violência às escolas: reflexões. Disponível em: <https://sites.usp.br/psicousp/violencia-as-escolas-reflexoes/>
  • Pellanda, A., Santos, C. de A., Dadico, C. M., Cara, D., Madi, F. R., Orsati, F. T., Meato, J., Oliveira, L., Aronovich, L., Franca, L., Frossard, M., Silveira, P. C. O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental.  
  • Welter, L. dos S., Vasconcellos, S. J. L., Barbosa, T. P., Lucchese, V. C., & Steffler, H. T. (2022). Assassinatos em massa: Uma pesquisa documental. Psico, 53(1), e38921.   

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