Pesquisa aponta lacunas na prescrição médica de exames e tratamentos 

Será que você faz uma boa prescrição médica, indicando corretamente os exames e tratamentos mais indicados para o seu paciente?

Uma pesquisa de percepção inédita intitulada “Receita de Médico: o que pensa quem cuida de diabetes, obesidade e doenças cardiovasculares”, liderada pelo endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, e que envolve um setor de inteligência composto pelo Diacordis, endoDebate e Editora Clannad, aponta uma distância significativa entre o que propõem as últimas diretrizes científicas e prescrição médica realizada em consultórios brasileiros.

A primeira edição do estudo Receita de Médico, apresentado no Congresso Diacordis, em São Paulo, evidencia lacunas preocupantes na prevenção, no diagnóstico e no tratamento de doenças crônicas como obesidade, diabetes e problemas no coração, nos rins e no fígado.

Leia também: Medicamentos Fitoterápicos: por que incluir na sua prática clínica?

O levantamento, conduzido via internet, entrevistou 654 médicos de praticamente todos os estados do país, a maioria do Sul e do Sudeste. Quase 90% deles fazem atendimento em caráter particular, em paralelo ou não à atuação com convênios e na rede pública. A maior parte dos participantes é formada por endocrinologistas, seguidos de cardiologistas e clínicos gerais.

“Constatamos lacunas de aprendizado e falhas importantes na hora de controlar as doenças crônicas. E é provável que a situação seja ainda mais grave se considerarmos a realidade geral brasileira”, analisou Carlos Couri, em entrevista ao portal Veja Saúde.

Pesquisa aponta lacunas na prescrição médica de exames e tratamentos 

Colesterol negligenciado

Em primeiro lugar, considerando o atendimento a pacientes com diabetes e alto risco cardiovascular, assusta o fato de que somente 40% dos médicos entrevistados indicam como meta níveis de colesterol abaixo de 50 mg/dL, deixando-os  mais vulneráveis a complicações como infarto.

“Podemos dizer que, entre os fatores de risco cardiovascular, o colesterol alto é o mais impactante. Ele tem de ser tratado com medicamentos e mudanças no estilo de vida”, contextualiza o coordenador do levantamento.

De acordo com os profissionais ouvidos, os principais empecilhos para o tratamento medicamentoso do colesterol são a dificuldade de adesão dos pacientes, o custo dos remédios (ainda que boa parte seja fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o programa Farmácia Popular) e os relatos de dores musculares associadas às estatinas.

Carlos Couri destaca ainda outro dado revelado pela pesquisa: somente metade dos médicos adiciona um novo medicamento ao esquema terapêutico quando o tratamento clássico à base dos comprimidos estatina e ezetimiba falha. No caso, a opção para resguardar as artérias seria encorpar o combo com um medicamento injetável da classe dos inibidores de PCSK9, que reduzem a produção de colesterol pelo organismo.

Sob pressão

Boa parte dos brasileiros com maior suscetibilidade a eventos cardiovasculares tem tanto hipertensão arterial como diabetes. Deve ser indicado, nesses casos, iniciar  o tratamento de ambas as enfermidades para minimizar as possíveis consequências para a saúde dos pacientes.

Nesse sentido, o novo estudo mostra que um quarto dos especialistas não prescreve a terapia combinada de medicamentos para controlar a hipertensão, como indicam as diretrizes. Como a doença é multifatorial, seria indicada a realização de uma terapia combinada.

Outro ponto importante é que diabetes e hipertensão arterial também estão entre as principais causas de insuficiência renal. Porém, atualmente, o controle efetivo, sobretudo com o apoio de certos medicamentos, ajuda a evitar esse desfecho.

No entanto, a pesquisa constatou que 25% dos médicos entrevistados não privilegiam o uso da classe de fármacos com maior potencial de preservação da saúde renal (inibidores de SLGT2) em pacientes com diabetes tipo 2 cujos exames já sinalizam estragos nos rins. Esses remédios, aliás, devem ser incluídos no programa Farmácia Popular em breve.

O peso na consulta

Em relação à obesidade, um dos problemas que envolvem o tratamento é a dificuldade da adesão do paciente em relação às mudanças de estilo de vida. A pesquisa aponta que mesmo o tratamento medicamentoso deve ser mantido mesmo com a perda de peso inicial ou almejada, sob pena de os quilos perdidos voltarem. Possíveis falhas de orientação e prescrição por parte do médico também podem estar por trás do famoso efeito sanfona, como apontam os resultados da pesquisa.

Apenas 46% dos profissionais entrevistados concordam com a ideia de que o tratamento com remédios deve ser contínuo e quase um terço dos especialistas acredita que a terapia pode ser suspensa quando o paciente tem uma boa perda de peso. “Sabemos que, se o tratamento não é constante, é alta a chance de haver reganho de peso”, alertou Carlos Couri.

O fígado no meio

O coordenador da pesquisa se diz particularmente preocupado com a falta de um olhar dos médicos em relação à saúde do fígado. “Estima-se que 30% da população mundial tenha acúmulo de gordura no fígado, e esse índice sobe para 80% entre pacientes com diabetes. A doença hepática gordurosa não alcoólica é um problema de saúde pública, capaz de levar a cirrose e câncer de fígado, além de estar ligada a maior risco cardiovascular”, lembrou.

Segundo o levantamento, o exame de elastografia hepática ainda é pouco receitado pela classe médica. No estudo, praticamente 50% dos profissionais nunca ou quase nunca solicitam o exame a pessoas com diabetes tipo 2.

Pensando no rastreamento do depósito gorduroso nesse órgão, a elastografia é muito mais sensível que métodos como ultrassom de fígado e exames de sangue que dosam enzimas hepáticas como TGO e TGP.

De acordo com Carlos Couri, esse dado revela quão descoberto está o cuidado com o fígado dos pacientes. E os números sobre a prescrição de fármacos que auxiliam na proteção do órgão também estão longe do ideal.

Prescrição da aspirina em combinação com um anticoagulante de baixa dosagem

Ainda na pesquisa, os especialistas foram convidados a emitir opiniões sobre um caso clínico comum entre os cidadãos brasileiros. Imagine um sujeito com diabetes tipo 2 que já infartou há seis anos. Você prescreveria um antiagregante plaquetário, classe representada pela popular aspirina?

“Um paciente com esse histórico é considerado de alto risco cardiovascular e, sim, deveria tomar o comprimido diariamente. Só que metade dos profissionais ouvidos diz não indicá-lo na rotina”, diz o estudo.

As diretrizes científicas atualizadas recomendam, nesses casos, a prescrição da aspirina em combinação com um anticoagulante de baixa dosagem (rivaroxabana), mas apenas 10% dos endocrinologistas e 16% dos cardiologistas afirmam receitá-los em tais circunstâncias.

Saiba mais: Rivaroxabana profilática em pacientes não cirróticos com trombose de veia porta

Carlos Couri também ressaltou que, na avaliação do risco cardiovascular e de possíveis complicações do diabetes, tem passado batido outra medida realizada em consultório, o chamado índice tornozelo-braquial. Com o apoio de um aparelho de doppler portátil, o médico checa a pressão nos braços e nas pernas do paciente e, através de uma fórmula matemática, consegue averiguar como está a circulação nos membros e inferir o perigo ao coração.

A Clínica Cleveland, referência em cardiologia nos Estados Unidos, orienta a execução desse simples exame a qualquer pessoa com diabetes acima de 50 anos e qualquer um que tenha mais de 65 anos ou histórico de tabagismo ou evento cardiovascular. Porém, a realidade é que 58% dos médicos brasileiros nunca ou quase nunca fazem esse teste em consultório, de acordo com a pesquisa recém-publicada.

Considerações sobre a pesquisa

“A pesquisa é interessante e aponta para alguns aspectos importantes de falha em seguir as melhores evidências e em manter a atenção para o cuidado integral do paciente, inclusive os de prevenção primária e secundária. Ao mesmo tempo, entretanto, é importante salientar que nem todas as métricas utilizadas para verificar as falhas nas prescrições necessariamente correspondem a condutas completamente consagradas ou incontestáveis no meio médico. Ainda assim, é notória a fragilidade que a pesquisa mostra de algumas prescrições médicas brasileiras no que tange a práticas baseadas em evidências e que possuem benefícios comprovados”, destacou o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e editor-chefe de Medicina de Família e Comunidade do Whitebook, Renato Bergallo, em entrevista ao Portal de Notícias da PEBMED.

Para o especialista, é possível perceber que são identificadas as dificuldades de adesão e de condições financeiras do paciente para seguir prescrições baseadas nas melhores práticas.

“De fato, a adesão dos pacientes tende a ser bem menor em situações de tratamento preventivo, onde o paciente ainda não “nota” a doença – como no caso de colesterol alto. Sendo assim, é fundamental que a adesão seja adequadamente trabalhada pelo médico em conjunto com o paciente, através do envolvimento do mesmo nas decisões a respeito de seu cuidado. A dificuldade financeira também pode ser impactante para pessoas que utilizam, por exemplo, estatinas além da sinvastatina, que costuma ser a única fornecida gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS), além de inibidores de SLGT2, que apenas mais recentemente vêm sendo recomendado por diretrizes como primeira escolha para tratamento e prevenção de algumas condições como diabetes. A metformina, por exemplo, é muito mais acessível do ponto de vista financeiro”, apontou Renato Bergallo.

O professor acrescenta ainda três fatores importantes para o aparecimento desse tipo de “lacuna de aprendizado” nas prescrições médicas:

  • A procura, por vezes, insuficiente de atualização por parte dos médicos;
  • A pouca percepção do potencial e da importância do tratamento preventivo, principalmente para doentes crônicos (por pacientes e médicos);
  • A fragmentação do cuidado, na qual o paciente acaba não recebendo um cuidado integral em saúde por estar sendo visto apenas por especialistas focais (como endocrinologistas ou cardiologistas) sem ter a coordenação do seu cuidado realizada por um médico generalista (como clínicos gerais ou médicos de família), em que ele possa atendido “como um todo”, não apenas direcionado a uma enfermidade específica ou sistema de órgãos.

“A prática do dia a dia muitas vezes é corrida e, se não nos mantivermos atentos às necessidades do paciente do ponto vista integral (preventivo e para além de doenças já diagnosticadas) e atualizados nas diretrizes clínicas mais recentes, essa negligência fatalmente aparecerá, independentemente de intenção ou dedicação. Por isso, o cuidado deve ser individualizado, a relação entre médico e paciente deve ser valorizada e o estudo por parte do médico deve ser constante e para toda a vida”, concluiu o editor-chefe de Medicina de Família e Comunidade do Whitebook.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo