Risco cardiovascular em hipogonáticos: orientações sobre reposição de testosterona

A terapia de reposição de testosterona (TRT) é o tratamento de escolha em pacientes hipogonádicos.

O critério diagnóstico de hipogonadismo varia na literatura, mas comumente é definido como níveis de testosterona ≤ 300 ng/dL (ou ≤ 240 ng/dL, repetidos e confirmados) associado a sintomas específicos como redução da libido, perda de ereções espontâneas, dificuldade para manutenção de ereções, sobretudo em situações predisponentes como antecedente de traumas testiculares, orquiectomias, orquites ou cirurgias hipofisárias, por exemplo. Atualmente, o guideline da Endocrine Society define a contraindicação para o início ou continuação da terapia de reposição de testosterona (TRT) de acordo com os seguintes critérios:

  • Início
    • Câncer de próstata metastático
    • Câncer de mama
    • Nódulo prostático ou enduração não avaliada;
    • PSA > 4 ou > 3 em situações de alto risco** (Antecedente em parentes de 1º grau de câncer de próstata ou afrodescendentes) que ainda não foi avaliado
    • Ht > 48%
    • LUTS grave (IPSS > 19)
    • IC descompensada
    • Desejo de fertilidade a curto prazo
  • Continuação
    • Se Ht > 54%, parar e aguardar melhora para reiniciar. Quando retornar, aumentar os intervalos de aplicação. Caso mesmo assim persista, é ideal indicar sua suspensão;
    • Solicitar avaliação urológica se:
      • Aumento em > 1,4 no PSA após o início do uso;
      • Surgimento de nódulo prostático;
      • Piora de LUTS após início

**Solicitar PSA antes do início do tratamento se entre 40 e 69 anos (alto risco*) ou 55 aos 69 anos (baixo risco)

Leia também: ENDO 2022: Reposição de testosterona: quando e para quem

Esses pontos são importantes porque são as situações que possuem maior nível de evidência. Em 2010, após um pequeno ensaio clínico randomizado (ECR) ser interrompido por aumento de eventos cardiovasculares com o uso da TRT, o FDA passou a investigar a questão mais a fundo e desde 2015 passou a exigir que os laboratórios realizassem estudos maiores em populações de alto risco cardiovascular para avaliar a segurança do uso da testosterona nesses pacientes. As evidências até então são controversas e a maioria vem de estudos observacionais retrospectivos, metanálises heterogêneas ou pequenos ensaios clínicos, em sua grande maioria com poder estatístico insuficiente e/ou não desenhados para avaliação de desfechos cardiovasculares, que normalmente requer um “N” maior.

Nesse contexto foi elaborado o TRAVERSE trial, que avaliou a segurança do uso da testosterona (gel) em pacientes de alto risco cardiovascular ou com eventos cardiovasculares prévios. O estudo foi apresentado no congresso da Endocrine Society e publicado no New England Journal of Medicine em junho/2023.

Obs: Para ficar claro, estamos falando da reposição da testosterona em indivíduos hipogonádicos. O uso inadvertido da testosterona em pacientes com níveis normais de testosterona ou sem sintomas, com fins estéticos ou de “aumento de performance” está claramente associado a aumento de diversos eventos adversos em saúde como maior risco de trombose, eventos cardiovasculares e insuficiência cardíaca, por exemplo, e é totalmente contraindicado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e outras entidades.

Risco cardiovascular em hipogonáticos orientações sobre reposição de testosterona

O TRAVERSE Trial

O estudo foi um RCT, multicêntrico, duplo-cego e randomizado, de não inferioridade, que incluiu 5.204 homens, entre 45 e 80 anos, em 31 centros nos Estados Unidos (EUA). A população selecionada era composta por indivíduos de alto risco cardiovascular, seja com doença pré-existente ou com alto risco cardiovascular, definido pela presença de pelo menos três fatores de risco como hipertensão, dislipidemia, diabetes, doença renal crônica, tabagismo ativo, idade acima de 65 anos, PCR ultrassensível elevada ou score de cálcio acima do percentil 75. Os participantes foram randomizados para o uso de testosterona gel 1,46% vs. placebo gel.

O endpoint primário foi demonstrar a não inferioridade da testosterona gel comparada ao placebo quanto ao risco cardiovascular, definido como o clássico “MACE de 3 pontos”, ou seja, os famosos Major Adverse Cardiovascular Events (IAM ou AVC não fatais e morte por causas cardiovasculares). Para isso, foi definido um limite superior de 1,5 de Hazard Ratio (HR) como corte de não inferioridade, com IC de 95%.

A média de idade dos participantes do estudo foi de 63 anos, com média de seguimento de 21,7 meses. O IMC médio era de 35 kg/m²; o nível inicial de testosterona inicial era de 227 ng/dL. Cerca de 68% tinham diabetes e 92% tinham hipertensão; 20% eram tabagistas. A média de LDL inicial era de 80 mg/dL e o hematócrito, 42%. Cerca de 54% dos indivíduos já haviam tido evento cardiovascular prévio, ao passo que 46% tinham mais do que 2 fatores de risco. O objetivo da intervenção era manter a testosterona em níveis entre 350 e 750 ng/dL.

Saiba mais: Uso de testosterona e risco de eventos tromboembólicos

Resultados

O grupo intervenção apresentou após 12 meses uma elevação de testosterona de 148 ng/dL, ao passo que o grupo placebo teve um incremento de apenas 14 ng/dL, atingindo ao final do período um nível de 375 ng/dL no grupo testosterona vs. 241 ng/dL no grupo placebo.

A testosterona gel conseguiu atingir o endpoint primário de não inferioridade com relação ao placebo, ou seja, este estudo demonstrou segurança cardiovascular no uso da testosterona gel em indivíduos com alto risco cardiovascular. O grupo testosterona apresentou 182 eventos no período de follow-up (7,0%) enquanto o grupo placebo apresentou 190 eventos (7,3%; HR 0,96; IC 95%; 0,78-1,17;  p < 0,001 para não inferioridade).

Com relação aos desfechos secundários, também houve não inferioridade da testosterona comparada ao placebo:

  • AVC não fatal: HR 1,1 (Sem diferença estatística)
  • IAM não fatal: HR 0,94 (Sem diferença estatística)
  • Morte por causas cardiovasculares: HR 0,84 (Sem diferença estatística)

Ainda, foi pré especificada uma análise terciária (que podemos considerar apenas como uma “geradora de hipóteses”), buscando avaliar risco de outros eventos adversos possivelmente relacionados ao uso da testosterona gel vs. placebo. Nessa análise, houve um maior risco de fibrilação atrial, tromboembolismo pulmonar e lesão renal aguda em indivíduos do grupo testosterona gel:

  • FA: 3,5% vs. 2,4%; p = 0,02
  • Risco de arritmias não fatais requerendo intervenção médica: 5,2% vs. 3,3%; p = 0,001
  • Lesão renal: 2,3% vs 1,5%; p = 0,04
  • Tromboembolismo pulmonar: 0,9% vs. 0,5%.

Conclusões e discussão

Trata-se do maior estudo de avaliação da segurança cardiovascular da terapia de reposição de testosterona (TRT) em pacientes hipogonádicos já realizado. O tamanho do estudo é um fator positivo. Contudo, algumas coisas precisam ser destacadas antes de maiores conclusões e generalização dos dados:

  • População estudada: norteamericana; logo, não podemos generalizar esse achado para todas as populações;
  • Formulação da testosterona utilizada: sabemos que há grandes diferenças do ponto de vista farmacocinético e de farmacodinâmica entre as diferentes formulações da testosterona (injetáveis trimestrais, ésteres utilizados a cada duas semanas), sendo que o gel é a forma que menos faz pico e leva a menores oscilações nos níveis de testosterona, sendo comumente uma via associada a menores alterações no hematócrito, por exemplo, o que pode levar a menor risco de eventos trombóticos.
  • O estudo teve um abandono médio de tratamento em ambos os grupos próximo de 60%, o que é muito importante em um estudo de não inferioridade, sobretudo quando realizado uma análise intention-to-treat, pois a “falta” de tratamento em mais da metade dos participantes de cada grupo levará a uma maior homogeneidade entre eles e será mais difícil detectar uma alteração. Contudo, os próprios autores do estudo destacam que as análises sensitivas realizadas, sobretudo a análise “on treatment”, de eventos que ocorreram exclusivamente em pacientes durante a vigência do uso de testo gel ou placebo. Nessa análise, os resultados obtidos foram semelhantes ao resultado geral do estudo.

Portanto, surge uma evidência melhor para o uso da TRT (gel) em indivíduos de alto risco cardiovascular. Porém é importante atentarmos a sugestões que o estudo trouxe, como risco de FA e de TEP. Outros estudos desenhados para isso deverão ajudar a esclarecer no futuro se esses indivíduos podem ou não receber a prescrição da terapia de reposição de testosterona (TRT) com segurança.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Lincoff AM, Bhasin S, Flevaris P, Mitchell LM, Basaria S, Boden WE, Cunningham GR, Granger CB, Khera M, Thompson IM Jr, Wang Q, Wolski K, Davey D, Kalahasti V, Khan N, Miller MG, Snabes MC, Chan A, Dubcenco E, Li X, Yi T, Huang B, Pencina KM, Travison TG, Nissen SE; TRAVERSE Study Investigators. Cardiovascular Safety of Testosterone-Replacement Therapy. N Engl J Med. 2023 Jul 13;389(2):107-117. DOI: 10.1056/NEJMoa2215025.
  • Bhasin S, Brito JP, Cunningham GR, Hayes FJ, Hodis HN, Matsumoto AM, Snyder PJ, Swerdloff RS, Wu FC, Yialamas MA. Testosterone Therapy in Men With Hypogonadism: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2018 May 1;103(5):1715-1744. DOI: 10.1210/jc.2018-00229.