Como fazer a avaliação inicial das vasculites sistêmicas?

Diversas condições podem levar a vasculites secundárias, as quais são estatisticamente mais frequentes que as vasculites sistêmicas primárias.

As vasculites sistêmicas são um grupo heterogêneo e complexo de doenças raras, cuja característica em comum é a ocorrência de inflamação vascular, com consequente isquemia e dano orgânico. A expressão clínica dessas doenças é determinada pelo calibre dos vasos e órgãos acometidos, associados à inflamação sistêmica.  

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De acordo com o consenso de Chapel Hill (2012), de maneira geral, podemos identificar 4 grandes grupos de vasculites: (1) vasculites sistêmicas primárias (vide abaixo), (2) vasculites de órgãos isolados, (3) vasculites associadas a doenças sistêmicas, e (4) vasculites associadas a causas prováveis.  

Esta revisão versará apenas sobre as formas sistêmicas primárias de vasculites.  

As vasculites sistêmicas primárias podem ser subdivididas de acordo com o calibre do acometimento vascular, a saber: (1) grandes vasos (arterite de células gigantes [ACG]  e arterite de Takayasu), (2) médios vasos (poliartrite nodosa [PAN] e doença de Kawasaki), (3) pequenos vasos (associadas ao ANCA – granulomatose com poliangiíte [GPA], poliangiíte microscópica [MPA] e granulomatose eosinofílica com poliangiíte [EGPA] – e por imunocomplexos – vasculite crioglobulinêmica, anti-C1q, vasculite por IgA e antimembrana basal glomerular), e (4) calibre variado (doença de Behçet e síndrome de Cogan). 

vasculites sistêmicas

Epidemiologia das vasculites sistêmicas

As vasculites são doenças raras, com incidência em torno de 20-40 casos por 1.000.000 de habitantes-ano. A ocorrências das vasculites é global, mas existem diferentes incidências conforme os países analisados. A arterite de células gigantes e as vasculites associadas ao ANCA acometem principalmente pacientes de etnia branca, concentrando-se, portanto, nos EUA e países da Europa. Já a doença de Behçet é mais frequentemente encontrada em países da rota da Seda (Turquia, Itália e Grécia).   

A doença de Kawasaki tem predileção pelo acometimento de japoneses e asiáticos, com maior concentração de casos no Japão. Um estudo brasileiro de base hospitalar conduzido em 6 estados do nosso país incluiu 1.233 pacientes e identificou que a doença de Behçet foi a mais frequentemente encontrada (35% dos casos), seguida da artrite de Takayasu (26,4%) e da GPA (16,2%).  

A prevalência das vasculites varia conforme a idade. Na faixa etária pediátrica, a vasculite por IgA é a mais frequente (pico por volta dos 6 anos); a doença de Kawaski tem seu pico de incidência entre os 2 e 5 anos. Na idade adula, a doença de Behçet predomina dos 20-30 anos, enquanto as vasculites associadas ao ANCA e a PAN acometem indivíduos um pouco mais velhos (50-60 anos). Nos idosos, a ACG é a vasculite mais frequente (pico >60 anos).   

Já com relação ao sexo, algumas doenças apresentam clara predileção pelo sexo feminino, como a ACG (2,5:1) e a arterite de Takayasu (9:1). Outras, como as vasculites associadas ao ANCA e a doença de Behçet, apresentam acometimento semelhante entre os sexos. A PAN parece ter um acometimento ligeiramente maior no sexo masculino.  

Fisiopatologia  

A combinação do perfil genético com a presença do gatilho ambiental induz uma desregulação do sistema imunológico, com perda da tolerância e seleção de linfócitos T e B autorreativos. Do ponto de vista patológico, é possível identificar inflamação vascular, com infiltrado inflamatório na parede e ao redor dos vasos.   

A lesão provocada pode gerar ruptura desses vasos e extravasamento de hemácias. Dependendo da doença, podemos observar a presença de necrose fibrinoide ou de granulomas nas paredes dos vasos e no tecido ao redor. O fenômeno da leucocitoclasia que ocorre em diversas vasculites de pequeno calibre são consequência da degradação de núcleos de neutrófilos, que participam do processo inflamatório.  

Do ponto de vista molecular e celular, as vasculites podem apresentar combinações variadas de resposta imune inata e adaptativa (incluindo Th1, Th2 e Th17). Vasculites granulomatosas apresentam um predomínio da resposta Th1, enquanto as vasculites necrosantes puras parecem ter predomínio da resposta Th17. A resposta Th2 é importante em diversas vasculites associadas a autoanticorpos, imunocomplexos e fenômenos alérgicos. Existe também a participação de diversas citocinas proinflamatórias, como TNF, IL-1, IL-2, IL-12, IL-23, IL-17, IL-6 e IL-8, além de outras substâncias como COX-2, óxido nítrico induzível, selectinas, VCAM, VEGF e HIF-1.  

Quadro clínico das vasculites sistêmicas

Essa seção não visa esgotar todas as manifestações clínicas de todas as vasculites sistêmicas primária. O objetivo é fornecer substratos para que seja possível o diagnóstico sindrômico de vasculite baseado no calibre do vaso acometido, o que permite direcionar para os diagnósticos etiológicos mais prováveis. Ao final da seção, apresentarei alguns dados que sugerem etiológicas específicas.  

O primeiro passo para o diagnóstico de uma vasculite é a identificação de sinais de alarme que sugiram esse grupo de doenças. Como o próprio nome diz, os dados mais importantes para se pensar em uma vasculite sistêmica são os fenômenos vasculares associados à presença de inflamação sistêmica (febre, perda ponderal, adinamia, fadiga, prostração, entre outros sintomas inespecíficos). 

A seguir, é importante definir o calibre do vaso acometido através da análise dos sinais e sintomas apresentados pelos pacientes. Como pode existir alguma sobreposição entre os sintomas de diferentes calibres, devemos sempre considerar o predomínio do acometimento vascular identificado. 

As vasculites de grandes vasos acometem a aorta e seus grandes ramos. Desse modo, as principais queixas são a claudicação intermitente vascular de membros ou a presença de complicações isquêmicas cerebrais (AVCi), cardíacas (IAM) ou renais (hipertensão renovascular). No exame físico vascular, podemos verificar uma redução ou assimetria de pulsos, diferença de PA entre membros, sopros vasculares, aneurisma de aorta abdominal e carotidínia. 

Já nas vasculites de médio calibre, ocorre predomínio do acometimento de vasos esplâncnicos, da pele, nervo periférico e vasos musculares membros. Dentre as possíveis manifestações, temos: nódulos subcutâneos, úlceras, livedo reticular, gangrena digital, mononeuropatia múltipla, microaneurismas e hipertensão renovascular. 

Por fim, as vasculites de pequeno calibre lesam principalmente a pele, olhos, glomérulo renal e capilar pulmonar. Assim, podemos encontrar púrpura palpável/urticária, lesões vesicobolhosas, glomerulonefrite, hemorragia alveolar, uveíte/esclerite/episclerite. 

Algumas manifestações clínicas podem sugerir o diagnóstico etiológico específico: 

  • ACG: claudicação de mandíbula, cefaleia nova em idoso, alterações nas artérias temporais superficiais, amaurose fugaz devido à neuropatia óptica isquêmica anterior (NOIA) arterítica; 
  • GPA: rinossinusite de repetição, nódulos pulmonares, epistaxe, nariz em sela, acometimento orbitário; 
  • EGPA: asma geralmente grave e refratárias, rinossinusite e pólipos nasais; 
  • PAN: nefropatia isquêmica, ausência de comprometimento glomerular e de capilarite pulmonar; 
  • Vasculite crioglobulinêmica: fenômenos vasculares induzidos pelo frio, fenômeno de Raynaud, síndrome de hiperviscosidade. 

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Exames complementares  

Os exames complementares em vasculite envolvem exames laboratoriais gerais (inespecíficos), sorologias, análise histopatológica e exames de imagem vascular. Os exames laboratoriais gerais vão demonstrar inflamação sistêmica, com elevação de VHS e PCR, anemia da inflamação, leucocitose e plaquetose. É importante avaliar a função renal, EAS, sedimentoscopia e pesquisa de proteinúria, uma vez que o comprometimento renal é frequente em várias vasculites.  

Os exames sorológicos são importantes por dois motivos: primeiro para excluir causas secundárias de vasculite e segundo para avaliar a positividade de algum marcador que sugira uma vasculite sistêmica primária específica. Deve-se solicitar sorologias infecciosas para HIV, HBV, HCV e sífilis. Além disso, exames de triagem para doenças autoimunes são importantes e incluem o FAN, fator reumatoide, ANCA e complemento (C3 e C4).  

Pacientes com vasculite associada ao ANCA apresentam ANCA positivo com positividade para anti-PR3 ou anti-MPO; já a vasculite crioglobulinêmica pode apresentar fator reumatoide positivo, consumo de complemento, pico monoclonal na eletroforese de proteínas e pesquisa positiva para crioglobulinas. 

A análise histopatológica é o padrão-ouro no diagnóstico das vasculites de pequeno e médio calibre e devem ser sempre estimuladas, se possível. Nelas, podemos encontrar sinais de vasculite necrosante (exemplo, poliarterite nodosa) ou granulomatosa (exemplos, GPA, EGPA, ACG e arterite de Takayasu), que auxiliam no diagnóstico diferencial entre as vasculites sistêmicas. A imuno-histoquímica pode identificar a presença de depósito de imunocomplexos naquelas que apresentam esse padrão de lesão vascular (exemplo, vasculite por IgA). 

Os exames de imagem vascular são particularmente úteis nas vasculites de médio e grande calibre. Podemos utilizar a angiotomografia, angioressonância, angiografia e o PET. As alterações mais sugestivas de vasculite são o espessamento parietal concêntrico e lesões focais do tipo estenose, oclusão, dilatação da parede e aneurisma. Exames adicionais como TC de tórax, seios da face, ecocardiograma etc. podem ser solicitados de acordo com a suspeita clínica.  

Classificação e diagnóstico das vasculites sistêmicas

Cada vasculite apresenta seus critérios de classificação específicos e sua apresentação foge ao escopo dessa dissertação.  

Com relação ao diagnóstico, é importante que seja feita uma abordagem sistemática desses casos. O primeiro passo é realizar uma suspeita clínica adequada. O segundo é a identificação do padrão de acometimento vascular, para que seja possível realizar um diagnóstico sindrômico adequado. O terceiro é tentar identificar sinais ou sintomas que sugiram uma etiologia específica.   

O quarto é excluir causas secundárias de vasculites (vide diagnóstico diferencial). Por fim, devemos documentar o acometimento vascular através de biópsias (pequeno e médio calibres) ou de exames de imagem vascular (médio e grande calibres).   

Diagnóstico diferencial

Diversas condições podem levar a vasculites secundárias. Devemos estar atentos a elas, pois elas são estatisticamente mais frequentes que as vasculites sistêmicas primárias. Assim, diversas doenças infecciosas (HIV, HBV, HCV, sífilis, hanseníase, tuberculose, endocardite infecciosas subaguda), inflamatória (lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, esclerose sistêmica, espondiloartrites), neoplásicas (leucemias, linfomas, mieloma múltiplo, tumores sólidos) e medicamentosas (cocaína, levamisol, propiltiouracil), além de trauma vascular (procedimentos endovasculares e próteses) fazem parte do diagnóstico diferencial. 

Tratamento

O tratamento das vasculites sistêmicas varia conforme a etiologia. De modo geral, envolvem o controle do processo inflamatório vascular agudo com corticosteroides, associados a imunossupressores. A intensidade da imunossupressão vai variar de acordo com o risco de perda funcional de órgãos-alvo importantes e com o risco de óbito.  

De modo geral, as vasculites de grande calibre apresentam ótima resposta ao corticoide e, portanto, estão indicados em todos os casos. Dentre as opções terapêuticas para a ACG, temos o tocilizumabe (anti-IL6-R) como a primeira linha de tratamento, associada à prednisona; como alternativa temos o metotrexato  

Em casos graves (especialmente com NOIA arterítica), pode ser necessária a pulsoterapia com corticoide; nesses casos, o AAS também pode ser associado. Já na arterite de Takayasu, o metotrexato é a medicação poupadora de corticoide mais frequentemente indicada, podendo ser substituído pela azatioprina. Na falha aos imunossupressores sintéticos, o uso de anti-TNF está indicado; estudos recentes demonstraram uma boa resposta ao tocilizumabe em pacientes que falharam aos anti-TNF.  

Em guidelines recentemente pulblicados pelo ACR/EULAR, além da corticoterapia inicial, o tratamento da PAN deve ser realizado, preferencialmente, com metotrexato ou azatioprina. O uso de outras medicações, como leflunomida ou ciclosporina, pode ser feito na falha; no entanto, faltam evidências de seu benefício. Casos graves (exemplo: amaurose, miocardite) podem ser tratados com pulsoterapia de metilprednisolona com ciclofosfamida. 

As vasculites associadas ao ANCA apresentam um corpo de evidência muito maior para o seu tratamento. Formas sem risco de óbito ou perda funcional de órgão nobre pode ser tratada com prednisona oral e metotrexato; já as formas graves, devem ser tratadas com pulsoterapia de metilprednisolona com ciclofosfamida (preferencialmente endovenosa no protocolo CYCLOPS) ou com rituximabe  

Nos casos graves, a associação com sulfametoxazol-trimetroprima reduz o risco de pneumocistose e deve ser prescrito, uma vez que o paciente se encontra fortemente imunossuprimido. A plasmaférese tem sido evitada devido a resultados recentes que demonstraram a ausência de benefício. Após induzir remissão, o paciente deve proceder com o desmame da corticoterapia e as medicações indicadas para a manutenção de remissão são o rituximabe, metotrexato, azatioprina e micofenolato mofetil. No caso específico da EGPA, o mepolizumabe (anti-IL-5) recebeu aprovação em bula para seu uso no tratamento dessa condição.  

No tratamento da vasculite crioglobulinêmica, o paciente deve ser orientado a evitar exposição ao frio. Em formas leves, o tratamento da condição de base pode ser suficiente para a remissão. Caso seja necessário, podem ser utilizados o corticoide e o metotrexato. Para formas mais graves, ciclofosfamida e rituximabe podem ser indicados, associados à plasmaférese ou não. 

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Prognóstico  

O prognóstico das vasculites varia com a etiologia. Marcadores de pior prognóstico são o acometimento renal, hemorragia alveolar, manifestações do SNC e necessidade de diálise. Pacientes com perda visual associada à ACG geralmente não recuperam a visão do olho acometido. O tratamento visa evitar o acometimento contralateral. Quando há acometimento isquêmico de membros, pode haver necessidade de amputações. 

Conclusão

As vasculites sistêmicas são um grupo complexo de doenças, que possuem alto potencial mórbido. O reconhecimento dos padrões de acometimento permite a realização de um diagnóstico sindrômico adequado, que aumentam as chances de um diagnóstico etiológico correto. É fundamental que um médico generalista conheça o tema para realizar o encaminhamento precoce, que pode melhorar sobrevida e reduzir morbidade. 

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