Diretrizes para manejo de dispositivos de assistência ventricular de curta duração

Neste artigo abordaremos os principais pontos do consenso europeu sobre o manejo dos dispositivos de assistência ventricular.

O choque cardiogênico, resultado da queda abrupta do débito cardíaco, leva a redução de perfusão, entrega inadequada de oxigênio e disfunção orgânica, o que resulta em mortalidade bastante alta. Uma das formas de restabelecer o fluxo sanguíneo, pelo menos de forma parcial, é com o uso de dispositivos de assistência ventricular percutâneos de curta duração.

Os dispositivos mais comumente utilizados são o dispositivo de oxigenação por membrana extracorpórea venoarterial (ECMO-VA), os dispositivos de fluxo axial (como o Impella®) e o balão intra-aórtico (BIA). Esse último ainda é frequentemente utilizado no Brasil, porém vem sendo cada vez menos utilizado na Europa.

Estudos randomizados são poucos e com resultados neutros e a indicação e manejo dos dispositivos é baseada em consenso de especialistas e alguns estudos retrospectivos. Assim, recentemente foi publicado um consenso europeu, baseado em evidência e/ou consenso de especialistas quando não havia evidência disponível, sobre o manejo desses dispositivos de forma prática. Abaixo seguem os principais pontos abordados neste documento.

Diretrizes para manejo de dispositivos de assistência ventricular de curta duração

Indicações

Esses dispositivos podem ser utilizados nos choques classe C, D e E da classificação de choque da SCAI, com causa potencialmente reversível ou em pacientes que sejam potenciais candidatos a transplante ou a dispositivos de assistência ventricular de longa duração.

Leia também: Choque cardiogênico: classificação, características e mortalidade

A decisão de utilizar ou não os dispositivos deve ser baseada, além dos parâmetros hemodinâmicos, na apresentação clínica, comorbidades, fragilidade e desejos do paciente.

Existem preferências entre dispositivos para casos específicos:

  • Em casos de parada cardiorrespiratória (PCR) refratária, choque classe E ou casos de hipoperfusão e insuficiência respiratória, ECMO-VA é preferida.
  • Em casos de infarto agudo do miocárdio (IAM) com disfunção importante de VE, prefere-se dispositivos de fluxo axial, devido a seu efeito em diminuição de sobrecarga.

Canulação

As cânulas utilizadas devem ser de grande calibre, no intuito de evitar isquemia de membros e sangramento. Um eixo arterial aorto-ilíaco-femoral adequado é necessário para o implante femoral e ultrassonografia é essencial para realização da punção da artéria e veia femorais. Se a equipe for experiente, a canulação pode ser realizada em qualquer local, inclusive no cenário extra-hospitalar.

Monitorização

A intensidade da monitorização depende da gravidade e instabilidade do choque, sua etiologia, comorbidades e perfil metabólico do paciente. O básico consiste de:

  • Avaliação seriada do lactato.
  • Avaliação seriada da saturação venosa central (SVO2) ou saturação venosa mista de O2.
  • Avaliação seriada do débito urinário.
  • Pressão arterial invasiva (preferência no membro superior direito nos pacientes em ECMO-VA, para identificar hipoxemia diferencial).
  • Ecocardiograma inicial e diário e em casos de instabilidade hemodinâmica. Quando em uso de ECMO-VA, avaliar esvaziamento do ventrículo esquerdo (VE), presença de trombo no VE e sinais de recuperação da função cardíaca. Quando em uso de dispositivos de fluxo axial, avaliar o correto posicionamento do dispositivo, função do VE e VD, insuficiência aórtica e status volêmico.
  • Cateter de artéria pulmonar.
  • Temperatura periférica.

Medicações

O uso de sedativos deve considerar seus riscos e benefícios e, sempre que possível, deve ser o mínimo possível para manter o conforto e segurança do paciente. A dose mínima é difícil de ser avaliada, já que há influência do circuito do dispositivo e maiores doses de ataque e manutenção podem ser necessárias.

Inotrópicos e vasopressores geralmente são mantidos nesses pacientes. O inotrópico de escolha é a dobutamina, porém milrinone também pode ser considerado, ao contrário do levosimendam, que deve ser evitado por conta de sua meia vida extremamente longa. Os vasopressores, sendo o de escolha a norepinefrina, ajudam a manter a perfusão dos órgãos, principalmente coração, rins e cérebro, porém, a pressão de perfusão ideal ainda não está estabelecida e deve ser individualizada.

Saiba mais: ISICEM 2023: Uso de vasopressores por via periférica é seguro?

Anticoagulação com heparina não fracionada de acordo com o TTPa é recomendada e em casos de trombocitopenia induzida por heparina pode-se utilizar argatroban, um inibidor direto da trombina, porém esta medicação não está disponível no Brasil. Em pacientes em uso de dispositivos de fluxo axial, como Impella®, e alto risco de sangramento, pode-se optar por uso de bicarbonato de sódio na solução do sistema.

Insuficiência respiratória

Insuficiência respiratória ocorre com muita frequência e mais de 80% precisam de suporte ventilatório, com meta de saturação de 93-98%. Há evidência de benefício com ventilação com pressão positiva, tanto de forma não invasiva quanto invasiva. Isso reduz o edema alvéolo-intersticial, o recrutamento alveolar e melhora a troca gasosa. A maioria dos pacientes com ECMO-VA necessita de ventilação invasiva e a extubação precoce deve ser buscada, assim que o paciente estiver estável.

Terapia de substituição renal

A insuficiência renal aguda, forte preditor de desfechos adversos e mortalidade intra-hospitalar, ocorre em até metade dos pacientes e 20% desses precisam de terapia de substituição renal. O sistema da ECMO-VA permite que a terapia de substituição renal seja instalada diretamente no seu circuito, sem necessidade de um cateter extra.

Prognóstico neurológico

A avaliação neurológica sistematizada é de extrema importância e inclui avaliação clínica, eletroencefalograma (EEG), exames de imagem e biomarcadores. Alterações que sugerem prognóstico ruim incluem coma irreversível, ausência de reflexo corneano e/ou pupilar, mioclonias ou convulsões precoces, EEG não reativo, com atividade epileptiforme, ausência de potenciais evocados somato-sensitivos em córtex bilateral, altos níveis do biomarcador enolase neuro-específica em 48 e 72 horas.

Manejo nas primeiras 24 horas

Nas primeiras horas de suporte circulatório, geralmente ocorre um estado vasodilatador e hipovolemia relativa, com necessidade de reposição volêmica e redução da velocidade do dispositivo para evitar eventos de sucção. Neste momento, o hematócrito deve ter como alvo valor maior que 24% e nesta fase precoce é importante avaliar o lactato e clearence do lactato.

Pacientes em uso de ECMO-VA, quando com perfusão adequada, devem ter a velocidade de fluxo reduzida, para permitir fluxo intracardíaco e abertura da valva aórtica, com redução da chance de trombo intracardíaco e de congestão pulmonar. Já pacientes em uso de dispositivos de fluxo axial, devem ter o fluxo o maior possível, para evitar eventos de sucção e hemólise. Em caso de hemólise, deve-se checar o posicionamento do dispositivo axial com ecocardiograma e reduzir o fluxo até que a hemólise se resolva.

Todos os pacientes devem ter o membro inferior monitorizado com exame clínico, avaliação de temperatura e doppler arterial.

Nestas primeiras horas, o risco de sangramento é bem maior que o risco de trombose e a anticoagulação deve ser minimizada ou postergada.

Manejo entre 24 e 72 horas

Alguns cuidados a serem lembrados:

  • Geralmente o paciente necessita sedação pois os dispositivos são sensíveis ao movimento dos pacientes.
  • Deve-se manter o ritmo sinusal e evitar taquicardia.
  • Em caso de eventos de sucção e hemólise deve-se realizar ecocardiograma imediatamente.

Se houver baixa pulsatilidade ou desacoplamento completo entre a pressão no VE e aorta em pacientes com dispositivos de fluxo axial, deve-se monitorizar este paciente de perto, com lactato, débito urinário e SVO2 para detectar hipoperfusão e em caso de hipoperfusão por baixo débito, mesmo com volemia otimizada e uso de inotrópicos, deve-se considerar uso de dispositivos mais potentes.

Em pacientes em uso de ECMO-VA, se houver baixa pulsatilidade e distensão de VE, é recomendado reduzir a sobrecarga de VE, geralmente com a combinação de dispositivos de fluxo axial e ECMO-VA ou BIA e ECMO-VA. Também pode ser feita a redução da sobrecarga de VE de forma cirúrgica ou com septostomia. Existem estudos randomizados que estão avaliando qual seria o melhor método a ser utilizado.

Manejo após 72 horas

Assim que houver melhora hemodinâmica deve ser iniciado o desmame do dispositivo. Preditores de boa resposta são: idade, etiologia do choque e presença ou ausência de hipertensão pulmonar. Sinais de recuperação do VE podem ser vistos pelo ecocardiograma: integral da velocidade da via de saída do VE > 10 a 12cm, onda S lateral > 6 cm/s.

Medicações para reduzir a pré e pós carga e aumentar a contratilidade podem auxiliar no desmame do dispositivo. Se houve falha de desmame pode-se manter o dispositivo por mais tempo, trocar para outro dispositivo com a possibilidade de mobilizar o paciente (como dispositivos axilares), fazer upgrade para dispositivo de maior duração, paliar o paciente ou retirar medidas de suporte, principalmente nos pacientes com baixa probabilidade de recuperação.

Complicações

A complicação mais comum da ECMO-VA é o sangramento relacionada às cânulas. Também podem ocorrer coagulopatia, hemólise ou trombocitopenia. Isquemia de membros é outra complicação grave que pode levar a necessidade de fasciotomia e até amputação.

Já em pacientes com dispositivos de fluxo axial, inserido de forma percutânea pela femoral, é comum a ocorrência de sangramento. Também é comum ocorrência de hemólise e a isquemia de membros é bem menos frequente que com uso de ECMO-VA.]

Conclusão

Os dispositivos de assistência ventricular vêm sendo cada vez mais utilizados, mesmo sem grandes estudos que mostrem evidência para os desfechos. Seu papel parece importante nos pacientes com choque classes C, D e E e é importante conhecer o manejo mais adequado e possíveis complicações. Diversos estudos em andamento poderão auxiliar nos próximos anos em relação a desfechos e a melhor tomada de decisão.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.
Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Møller JE, Sionis A, Aissaoui N, Ariza A, Belohlavek J, De Backer D, Färber G, Gollmann-Tepeköylu C, Mebazaa A, Price S, Swol J, Thiele H, Hassager C. Step by step daily management of short-term mechanical circulatory support for cardiogenic shock in adults in the intensive cardiac care unit. A clinical consensus statement of the Association for Acute Cardio Vascular Care (ACVC) of the ESC, the European Society of Intensive Care Medicine (ESICM), the European branch of the Extracorporeal Life Support Organization (EuroELSO) and the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Eur Heart J Acute Cardiovasc Care. 2023 Jun 14:zuad064. DOI: 10.1093/ehjacc/zuad064.